Capítulo 1 - Não me VEJA

7.5K 808 1.1K
                                    

AVISO DE GATILHO.
O capítulo a seguir conta com cenas focadas em transtornos psicológicos, tais como: depressão, ansiedade e o TOC.
Tais cenas podem gerar crises, por isso, peço que leiam com cuidado e tenham consciência de seus limites.

Obrigada pela atenção,
Boa Leitura!

--------------------------------------------------------------------------------------------------------------------


Passos pequenos eram dados enquanto sua respiração pesava. De um lado para o outro, todos o observavam — talvez por sua beleza, talvez porque estivesse andando em círculos tamanho o nervosismo, não se sabe. O que se sabe é que não gostava de sair do lugar em que estava, não gostava quando remexiam em suas coisas — não gostava quando tocavam em suas coisas. Respirando profundamente outra vez, o moreno pegou o álcool em gel e passou em suas mãos pela décima quinta vez naquele dia.

Tudo é uma questão de manter a calma, pensou. Havia sido obrigado a sair e todo aquele peso era demais para ele, odiava ter que se misturar com pessoas — odiava pessoas.

Colocou um sorriso falso e tocou no máximo de coisas possíveis quando a porta se abriu, em sua mente, os números iam passando — um, dois, três, quatro, cinco (...), nove, dez. Precisava contar mais, precisava respirar mais. Um, toque no vaso. Dois, na mesa. Três, nas paredes. Quatro, sorria — mostre os dentes um pouco sujos de comida para fingir que não está querendo vomitar. Cinco, não use luvas. Seis, deixe a blusa malpassada para fingir desleixo. Sete, faça o mesmo com a calça. Oito, aperte a mão. Nove, aceite comida. Dez, seja o que for, não pire.

Passos cronometrados para enganar.

Mentiu à psicóloga vinte e três vezes naquela sessão. Disse quatro vezes que estava bem; mostrou as mãos sem luvas, sete e tocou em sua mesa quarenta e três. Por fim, conseguiu, depois de um longo tempo — um ano e seis meses — ser liberado da terapia. Suspirou profundamente, seu sorriso logo deu lugar a uma cara séria, pegou o álcool em gel e passou em suas mãos. Chegando em seu carro, sentiu o cheiro de limpeza entrar por suas narinas e agradeceu — adorava aquele cheiro.

Antes de dirigir, pôs as luvas brancas de renda que havia comprado em um site internacional. Adorou sentir o tecido passar por suas mãos e impedir a sujeira de adentrar em contato consigo mesmo. Dirigiu cuidadosamente, não infringindo o máximo de velocidade nenhuma vez sequer — o carro automático o ajudava a não fracassar. Ao chegar em casa, estava exausto, havia sido um dia cansativo para ele. Sabia de muitas coisas, mas não costumava ser bom com mentiras, não até ter sido convidado a fazer terapias e ir a um psiquiatra.
Não até ter sido obrigado a ser.

Sabia que sua forma de vida era exótica, por assim dizer, mas não a considerava doentia. Pelo contrário, imaginava que o mundo seria um lugar melhor e com menos germes se todos vivessem como ele. Chegando em casa, trocou os sapatos na entrada, para garantir que não entraria sujeira. Tirou as roupas e ficou apenas de cueca — a única parte da sua vestimenta que estava passada e perfeitamente limpa. Em seguida, vestiu um pijama perfeitamente alinhado, arrumado e organizado. Não gostava de coisas desengonçadas, não gostava de bagunça, não gostava de muitas coisas.

Também trocou as luvas e pôs uma descartável, colocando a que usou no carro para lavar e secar. Pegou a vassoura e varreu pela quarta vez no dia a casa, espanou o máximo que seus pulsos permitiram e só depois verificou se a residência estava realmente limpa. Passou o rodo com cuidado e só se cansou ao ver que o lugar estava brilhando — exatamente três vezes depois.

Era uma rotina exaustiva, mas valia a pena.

Toda sua moradia era branca, não havia espaços para cores em sua vida — não as que poderiam esconder sujeira. Observou os livros em perfeita harmonia de tons na estante e os organizou por ordem alfabética, depois, ajeitou os vasos em cima da mesa para que eles estivessem milimetricamente no lugar.

Somente depois de toda a limpeza diária se deu ao trabalho de tirar as luvas, finalmente sua casa estava limpa — finalmente existia um recanto em que podia sentir as coisas e tocá-las sem medo. Mas antes, estava decidido a tomar um banho. Colocou as luvas novamente — luvas novas, claro — e abriu uma esponja com cuidado. Passou em seu corpo inteiro, até sentir sua pele queimar, e só parou quando as lágrimas invadiram seus olhos, limpando-os.

Adorava se sentir limpo, sentia que assim era a única maneira de ficar em paz. Pegou uma garrafa do Hipoclorito de Sódio comprado em um supermercado qualquer e bochechou, lavando bem os dentes — fazia isso três à cinco vezes por semana. Depois, passou água.

Sorriu em frente ao espelho, sua boca queimava, mas seus dentes estavam brancos. Lindos, reluzentes. Passou água sanitária por sua pele, a sentiu arder, mas isso não importava, precisava ficar limpo. Limpeza era fundamental para a humanidade. Finalizou deixando a água e o sabonete retirar o cheiro impregnado em sua pele — ou seria na sua essência?

Ao sair do banheiro, trocou as sandálias por uma pantufa qualquer. Seu corpo estava em chamas, mas não poderia reclamar. Estava limpo, isso era tudo que o rapaz fazia questão. Observou seu corpo no espelho, as marcas vermelhas da queimadura estavam a mostra, mas ele as escondeu com uma camiseta branca qualquer. Suas coxas eram pequenas, finas, afinal, era modelo — não poderia engordar — e seu cabelo era escuro.

Existia também os seus olhos verdes que eram apaixonantes, mas não importavam tanto, o que realmente o fazia se destacar era o sorriso.

Branco.

Alinhado.

Perfeito.

Sentiu uma onda de calor ser rejeitada de seu corpo e correu ao vaso sanitário. Vomitou. Em meio ao vômito, saiu sangue. Quase que caia, mas conseguiu se segurar nas paredes. Deixou seu corpo escorrer por ela, não antes de apertar a descarga e sentir o cheiro forte do líquido que escapava do seu corpo. Quis vomitar novamente, mas se controlou. Odiava aquela sujeira e odiava ainda mais saber que existia tanta dela dentro de si.

Escovou os dentes com creme dental dessa vez e sentiu a pasta arder nas aftas que o líquido anterior havia causado. Respirou fundo, não poderia se dar ao luxo de chorar de novo — porque homens não choram, havia dito seu pai uma vez, antes de falecer de câncer e lhe entregar toda a fortuna acumulada que possuía. Limpou o vaso sanitário quatro vezes, demorando exatos quarenta minutos, até sua mão cansar e ele perceber que seria melhor dormir um pouco. Assim fez, não porque quisesse, e sim porque não aguentava mais enxergar sujeira no rosto limpo anteriormente.

Acordou de madrugada, comeu uma fruta — não poderia engordar — e fez algumas abdominais, em seguida, praticou ponte. Tudo para manter seu corpo, tudo para ser belo. Algumas vezes, dava umas fugidas, mas logo retornava a rotina — e passava a semana sem comer nada, quase desmaiando pelos ensaios, para se retratar. Observou seu quarto, havia uma esteira, um guarda roupa e uma cama. Apenas. Sentiu o suor descer por conta do calor e ligou o ar condicionado recentemente limpo — o limpava semanalmente, não importava o que a empresa de limpeza recomendasse. Odiava que ele pingasse e odiava mais ainda conviver com poeira. Quis contratar alguém para fazer todo o serviço sujo, mas relembrou-se da última mulher que trabalhou com ele — e como ela bagunçava tudo enquanto dizia arrumar — então, desistiu de contratar quem quer que fosse.

Sua forma de vida era solitária, mas valia a pena. Colocou o Rivotril na língua e o engoliu sem fazer esforço, depois de 30 minutos, o remédio começou a fazer efeito. Só com ele para sua mente se calar e a sujeira do local dar lugar a bons sonhos — dormiu no sofá, como se fosse uma criança, enquanto o ar condicionado esfriava todo o apartamento.

Em seus sonhos, seu pai o parabenizava por seu esforço, sua mãe retornava e toda sua família era estável, tudo era diferente da realidade.

Em seus sonhos, encontrou a paz que nunca encontrava na vida real.

Não me TOC [COMPLETO]Onde as histórias ganham vida. Descobre agora