Capítulo 2 - Não me LEMBRE

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AVISO DE GATILHO.
O capítulo a seguir conta com cenas focadas em transtornos psicológicos, tais como: depressão, ansiedade e o TOC.
Tais cenas podem gerar crises, por isso, peço que leiam com cuidado e tenham consciência de seus limites.

Obrigada pela atenção,
Boa Leitura!

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Era apenas uma criança. Uma criança e sua família feliz, com seu pai que nunca o batia e sua mãe que nunca fugia. Ambos eram bons e estáveis, como um rei e uma rainha devem ser para seu povo. Pela tarde, o povo — que se constituía por apenas um jovem rapaz de fios morenos — tocava piano como agora já não era mais capaz de fazer, não desde que seu pai se fora, e, naquele tempo, via as cores se misturarem à medida que seus dedos percorriam as teclas brancas e negras. Um tom azulado, rosado e arroxeado escapava das notas musicais, na época ainda desengonçadas. Na época, ainda sujas e tímidas, porém felizes.

Sim, em certa instância, fora feliz. Realmente feliz. Até os seus catorze anos, quando sua mãe entrou em seu quarto nas pontas dos pés e chorou em silêncio no pé da sua cama, implorando seu perdão — então, ela se fora, cansada da ausência do pai. Por muito tempo, contestou-se sobre este fato. Seria realmente um filho tão ruim a ponto de não merecer ter fugido com ela? E se tivesse contado a verdade, que estava acordado quando ela, aos prantos silenciosos, revelou seu desejo de ir embora, ela teria permitido que ele fosse junto? Bem, não sabia. O que sabia é que seu pai logo se cansou de seu desleixo e começou a descontar nele sua raiva. Demorou exatas 120 cintadas — dez rodas vivas de doze giros — para que o menino crescesse e evoluísse, tornando-se o homem que é hoje, seja lá o que isso significasse. Passando apenas a sobreviver, veja bem, sobreviver.

Não que tudo fosse culpa de seu pai, longe disso, também admitia sua parte nesta injúria — na época, nunca chegou a contestar de verdade o mais velho e apenas acatou todas suas ordens, desistindo dos seus sonhos e persistindo na carreira de modelo. Aos quinze anos, tudo que ele pensava era em se casar com sua namorada e fugir daquela vida, para, enfim, ser feliz novamente. Nos momentos mais recentes, ele já não acreditava naquela cruel esperança de felicidade — embora soubesse que se deixasse-a morrer, acabaria morrendo junto.

Voltou às memórias de infância, pois as apreciava muitíssimo. Sua antiga sala era grande e ostentava um piano negro que a enchia de charme. Em suas primeiras lembranças, aquele cômodo era um castelo, mas, na última vez que ali pisara, aquilo se tornara uma prisão. Sem os olhos verdes de sua mãe — iguais aos que ele ostentava — aquele recinto já não possuía cor, não mais. Somente o cinza do pai inundava aquele local e, naquele mar de obscuridade, se tornou prisioneiro das águas que insistiam em o afogar.

Não chore, seu pai o alertara uma vez, pois não criei uma bichinha. Aquelas palavras o corromperam por dentro, como se fosse água sanitária e sua real natureza, uma sujeira. Era imundo, não havia nada que o reparasse — pois era defeituoso, havia vindo com um vazamento em seus olhos e, por qualquer coisa, insistia em chorar. Mesmo que segurasse, mesmo que escondesse, aquele vazamento permanecia lá, dominando-o por dentro, junto com as lembranças de seu passado. Deixe o menino, sua mãe costumava defendê-lo. Quando ela se foi, levou uma parte do filho junto com suas malas.

Respirava com dificuldade e, ao acordar daquele sonho, deparou-se com a dura realidade e sentiu seus músculos se contraírem. Estava tão cansado quanto quando fora dormir, por isso, comeu apenas um iogurte com granola, focando-se sempre em sua dieta. Precisava manter o peso, precisava se manter bonito. Ninguém o amará se você não for perfeito, Adams, seu pai o disse uma vez, sem piedade, como costumava falar todas as outras coisas.

Hoje, já adulto, confirmava aquelas palavras. Ninguém o amaria, nunca. Nasceu para ficar sozinho, com sua maldita mania de limpeza, era refém de seus vícios — eles colocavam uma arma invisível em sua cabeça e o obrigavam a dançar conforme a melodia do piano que já não tocava.

Não importava o que a amiga de família, Sofia, o falasse. Não importava como seu agente, Lucas, lhe chamasse. Não importava nada, nem mesmo Marina, a doce menina de cabelo com pontas rosas. O que importava era que seu sobrenome, apenas aquilo tinha real importância, certo? Os pedaços de si jogados pelos cantos da sala ainda cortavam o garoto que existia dentro dele, mas fingia não sentir. Sempre fora bom em fingir não existir, igualmente.

O que importa, no final das contas?


Não me TOC [COMPLETO]Onde as histórias ganham vida. Descobre agora