Capítulo 21

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A floresta era sua velha conhecida, uma vez que, durante uma boa parte da sua vida, o caçador passou perambulando pelas suas matas e trilhas, principalmente entre as idas e vindas de Vila Ernelis. O cheiro das flores e das árvores. O som dos insetos, dos animais, da água correndo no rio, do farfalhar das folhas balançando no alto dos galhos com as lufadas frias de vento. A terra fofa e enlameada que sujava a sua bota e as suas calças. O sereno, a cerração e o orvalho que a noite trazia. Tudo isso era familiar ao caçador. Ele conhecia cada som, cheiro, flor, erva, animal, árvore e tudo mais que dava vida à floresta e a tornava tão fascinante.

Agora isso eram apenas lembranças de uma vida passada. Ao longo das últimas décadas, a floresta foi perdendo o seu encanto e tudo aquilo que a tornava fascinante perante os olhos do caçador. Aos poucos, ela foi se rendendo às criaturas e se tornou sombria e praticamente inabitável para os homens, principalmente durante a noite. Hoje, qualquer um que ouse a se aventurar floresta adentro, seja por falta de conhecimento ou por vontade própria, é bem provável que pague a ousadia com a vida.

Pensar em toda a beleza e a pureza do passado só fez aumentar ainda mais a raiva que sentia por estar caminhando ao lado de Alkhor pelas últimas oito horas. O demônio da pele vermelha andava na frente do caçador e do seu amigo fantasma, a pelo menos uns vinte passos de distância, num ritmo frenético e praticamente sem parar. Ele parecia extremamente satisfeito com os dois o seguindo e não diminuiu o ritmo dos seus passos em nenhum momento e muito menos parou alguma vez para olhar para trás. Durante todo o caminho, nenhuma outra criatura foi avistada em qualquer canto da mata e tudo que a floresta tinha a oferecer a eles era a sua familiar escuridão e o seu mais resoluto silêncio.

Quando deixaram a cabana do Rasban, horas atrás, o grupo rumou para o norte em silêncio. O caçador encontrava-se enojado com a situação e fez questão de não trocar uma palavra sequer com o demônio, pois, em sua mente, ele tinha certeza absoluta que, caso Alkhor abrisse a boca para falar algo que o desagradasse, seria o fim da criatura, e com isso, provavelmente, também seria o fim da sua chance de encontrar Gorvas e acabar de uma vez com a criação dos vormags. O velho fantasma pareceu perceber o conflito que passava na cabeça do caçador e decidiu deixá-lo em paz com os seus pensamentos.

A manhã estava prestes a chegar quando Alkhor parou, virou-se para o caçador e disse:

— Nós não estamos muito longe de onde o meu mestre se encontra, espectro — Alkhor apontou em direção a uma trilha um pouco escondida e continuou: — Sigam por esse caminho por mais ou menos umas cinco ou seis horas e vocês vão chegar ao seu destino.

Surpreso por finalmente ouvir algum som diferente do que vinha escutando até o momento, Rasban ficou sem saber o que pensar direito com a atitude de Alkhor. Por que motivo ele nos trouxe até aqui para nos deixar seguir o resto do caminho sozinho?, o velho pensou.

— Você não vem conosco, sua besta imunda? — Rasban perguntou.

Alkhor olhou na direção do fantasma sem lhe dar uma resposta. Coube ao caçador a tarefa de satisfazer a curiosidade do velho.

— Não, meu amigo. Mesmo com a proteção das árvores e da mata — o espectro olhou para o alto e logo depois apontou com o queixo para Alkhor ao falar — a manhã está chegando e esse aí precisa encontrar um buraco sujo para se esconder.

O demônio fuzilava o caçador com o olhar e continuava parado no mesmo lugar, apontando para a trilha, com a boca fechada.

— E como nós vamos encontrar o mestre dele? — Rasban indagou ao caçador e Alkhor deixou o silêncio de lado e interviu.

— É só permanecer na trilha, seu fantasma ignorante. Meu mestre está à espera de vocês.

Rasban encontrava-se mais inquieto do que o normal e não parecia estar muito satisfeito com a resposta que acabara de receber.

— Você espera realmente que eu acredite na sua palavra, que por sinal não vale nada?

— Acredite no que quiser, velho. Eu os trouxe até onde podia, agora parem de me perturbar e sumam logo daqui — Alkhor retrucou.

— Você não está levando isso em consideração, certo? — Rasban olhou na direção do caçador, que assentiu levemente com a cabeça para ele. — Não é possível! Não está vendo que esse verme nos trouxe para uma armadilha?

A dúvida que passava pela cabeça do Rasban era legítima, e o caçador estava bem ciente disso, uma vez que partilhava do mesmo pensamento, porém, ele nunca esteve tão perto de chegar ao responsável por toda a onda de matança que ele encontrou há algumas noites atrás, quando achou a primeira pista dos vormags e decidiu investigar.

— Nós já viemos até aqui, Rasban — o caçador deu de ombros. — Armadilha ou não, isso não faz a menor diferença agora. Não podemos simplesmente ignorar o acordo que fizemos com Alkhor e voltar para a sua cabana agora.

O velho parecia bem nervoso com a situação desfavorável. Ele andou de um lado para o outro, pensativo, e de quando em quando, passava a mão em sua cabeça e falava sozinho. Logo depois, ele se aproximou do caçador e cochichou em seu ouvido:

— Eu não fiz acordo nenhum com esse ser desprezível, e não tenho a mínima vontade de encontrar o mestre sem graça dele, então, com a consciência tranquila, eu te pergunto. Por que você não acaba logo com esse verme e damos o fora daqui?

Com um sorrisinho de canto de boca, o espectro respondeu:

— Por qual motivo eu faria isso agora?

Rasban pensou por um breve momento antes de responder.

— Adimus pode estar precisando da nossa ajuda. São pelo menos três dias de caminhada da minha cabana até Vila Ernelis e apesar de ter reagido bem ao tratamento, a menina ainda necessita de cuidados. Isso sem contar que eles podem estar em perigo nesse momento, já que é provável que outras criaturas estejam em seu encalço enquanto nós conversamos e...

— Não se preocupe, meu amigo — o caçador interrompeu. — Adimus sabe se cuidar muito bem e não vai deixar que nada aconteça a pequena Arryn, além do mais, não era atrás dela que os demônios estavam.

— Como pode ter tanta certeza? — o fantasma perguntou.

— Andem logo, suas lesmas — Alkhor interrompeu a conversa aos gritos. — Eu não tenho o dia todo. Tomem logo o seu rumo de uma vez por todas.

O espectro encarou o demônio, virou-se para Rasban, colocou a mão no ombro do fantasma e falou:

— Não se preocupe, Rasban, eu não estou sendo frio e muito menos insensível. É óbvio que eu estou preocupado com a menina e o meu velho amigo, mas assim como depositei a minha fé em você na noite passada, estou fazendo o mesmo com Adimus. Ele nunca me decepcionou antes e não será agora, com uma missão tão importante em mãos, que isso vai acontecer.

Verdadeiramente tocado com as palavras que acabara de ouvir, Rasban apenas abaixou a cabeça e ficou em silêncio com os seus pensamentos, envergonhado por ter pensado tão mal do caçador mais uma vez. O fantasma tinha plena consciência que estava no seu direito de sentir ódio pelo homem que desgraçou a sua vida, mas, ainda assim, no fundo ele sentia que era errado pensar dessa maneira, principalmente com tudo o que estava em risco nesse momento. Sem palavras para expressar o que sentia, o velho apenas permaneceu em silêncio.

— Venha — o espectro envolveu o ombro do fantasma com o seu braço e foi em direção à trilha para qual o demônio apontava. — Vamos encontrar logo esse tal de Gorvas e ver onde isso vai nos levar.

Sem nenhuma outra opção plausível no momento, Rasban anuiu e se desvencilhou do abraço sincero do caçador, sem conseguir discernir se por raiva ou vergonha, e caminhou ao lado dele rumo ao destino desconhecido que os aguardava à frente.

O Caçador MisteriosoOnde as histórias ganham vida. Descobre agora