Capítulo 27

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A enorme poça que se formou logo abaixo de sua cabeça transmutou-se numa espécie de espelho translúcido, relevando uma face terrivelmente fustigada e desesperançosa, no exato momento em que um gigantesco raio cortou o céu e foi em direção ao chão em algum lugar não muito longe dali. A magnífica explosão de luz obliterou a escuridão impregnante que tomava conta da floresta, e permitiu que, ao menos por uma fração de segundos, Adimus pudesse encarar o seu reflexo no espelho d'agua e contemplar todo o terror que vinha estampado em sua própria face e que ele não havia percebido até momento. Logo acima de sua cabeça, o gigante viu, nitidamente, a imagem do demônio de pele negra e lábios costurados, com a sua arma em riste, preparando-se para desferir o golpe final.

A lâmina do poderoso machado desceu como uma afiada foice, eviscerando o ar e a água da chuva com uma fome imparável, clamando por refestelar-se no farto banquete exposto a sua frente e ansiando por provar o sabor da suculenta carne do extenuado gigante, que, a essa altura, mal conseguia respirar e não parecia ter forças para oferecer alguma resistência ao demônio e a sua inevitável vitória.

O cansaço batia impiedosamente a sua porta e cobrava um preço impagável por todas as estripulias que o gigante cometera até então. Uma dor lancinante irradiava sem parar de algum ponto na parte posterior de sua perna, próximo a sua panturrilha, e ressoava para o restante do corpo, causando uma desconfortável sensação de dormência em seus membros e transformando cada respiração em uma batalha ferrenha entre os seus pulmões e o ar, que apesar de úmido, teimava em queimar ao entrar pela sua boca.

No final, prestes a se entregar e aceitar o seu irremissível fim e apesar da grande falácia finalmente revelada, Adimus foi estranhamente remetido a lembrança da última noite em que passara com a menina, ao relento no meio da floresta. A pequena Arryn encontrava-se aninhada em seu musculoso peito, enroscada confortavelmente em sua capa e enrolando despretensiosamente os minúsculos dedinhos em sua barba enquanto lutava para se manter acordada, desfrutando cada segundo de uma inimaginável e acalorada sensação de felicidade. O gigante sentiu um nó na garganta ao imaginar que tudo não passara de fingimento e se recusou a aceitar passivamente a morte, que se encontrava a milímetros de reivindicá-lo para si, ao menos não antes de descobrir toda a verdade por trás dessa noite.

Tomado por uma fúria irracional e inacreditável, Adimus sentiu uma espécie de energia singular e ao mesmo tempo imensurável brotar da terra encharcada e enlameada, que cobria inteiramente as suas mãos e dedos, fluir por cada uma das incontáveis e intrincadas veias do seu corpo colossal, extinguindo imediatamente toda a sensação de dormência que o acometera e suprimindo completamente qualquer dor que ele havia sentido até então.

O estrondo de um trovão cortou o ar e despertou o gigante do seu torpor. Ele ergueu a cabeça para encarar o seu algoz com suas forças revigoradas, porém, ao olhar para cima, ele mal teve tempo de ver a lâmina que descia velozmente de encontro ao seu crânio. Adimus sabia que não havia muito o que fazer nesse momento e movido pela nova e desconhecida energia que se espalhara pelo seu corpo, ele se lançou violentamente de encontro à arma que descia na sua direção, e conseguiu, quase no último segundo, agarrar com força o cabo do machado, que graças a uma intervenção divina, parou a milímetros do seu rosto. Mas Adimus sabia muito bem que esse tipo de ajuda seria impossível, e descartou imediatamente o pensamento.

Bascas olhou para o gigante incrédulo. O demônio maneta estava absolutamente certo da sua vitória e custou a aceitar que o homem semiderrotado ainda poderia ser capaz de medir forças com ele de igual para igual. Grunhindo um punhado de palavras inaudíveis e de um dialeto que Adimus não compreendia, mas que podia jurar se tratar de xingamentos e mau agouro, o demônio da pele negra parecia determinado a dar cabo do homem que já deveria estar morto, e colocando ainda mais força no seu único braço bom, ele usou o outro braço, cortado ao meio, para jogar todo o peso do seu corpo na arma, a fim de cravá-la de uma vez na testa do homem ajoelhado à sua frente. Adimus, por outro lado, não fazia esforço algum, e segurava o cabo do machado com apenas uma mão, a direita, enquanto tateava a parte posterior da sua perna esquerda em busca do objeto que o perfurara momentos antes.

O Caçador MisteriosoOnde as histórias ganham vida. Descobre agora