Súbito

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O primeiro dia de trabalho foi interessante. Isaac era um homem bom, Charles passou a manhã servindo cervejas e alguns lanches para alguns casais e homens engravatados que mexiam em seus computadores. O lugar era sempre calmo e as pessoas eram fáceis de lidar, a musica boa ajudava a relaxar. Ele usou luvas o tempo todo, usou como desculpa uma sensibilidade nos dedos e Isaac não reclamou do fato. As pessoas entravam e saiam e Isaac estava sempre ocupado com alguma coisa. Entre as idas e vindas ele tinha alguns momentos para se sentar no balcão e descansar um pouco os pés.

— Ei, jovem – disse um homem sentado no balcão. – Você é novo aqui, não?

— Hoje é meu primeiro dia – disse Charles.

— Manda uma Wülerberg pra cá – disse o homem grisalho.

— Aqui está – disse Charles, entregando a cerveja.

— Tem algo no seu rosto – disse o homem. – Já vi essa expressão antes, aconteceu algo com você, não?

— Várias coisas, na verdade, mas não vem ao caso.

— Eu sou Mark Ruffos – o homem estendeu a mão. – Vai me ver muito por aqui.

— Charles – os dois apertaram as mãos.

— Eu vejo no seus olhos a perda de alguém que você amava. Eu poderia dar aulas e palestras sobre esse olhar.

— E por quê? – Ele sorriu. – Por acaso é um poeta?

— Não amigo – Mark riu. – Quem me dera minhas armas fossem canetas, a verdade é que eu já fui a causa de muitos olhares como o seu.

— Como assim, o que você fez?

— Serviu no serviço militar, garoto?

— Dispensado, não fui bom o bastante.

— Iraque, os meses mais horríveis de minha vida – disse Mark. – Quando você está na guerra, você não para pra pensar no que o inimigo pensa. Você sabe que se não atirar primeiro, ele atira.

— E você atirou primeiro quantas vezes?

— Quando você fala fica claro que não entende nada da guerra. Não dá pra contar quantas vezes você atira primeiro, só quando você não atira – ele respirou fundo. – Uma vez, uma vez eu não atirei primeiro.

— E como foi isso? – Dizia Charles enquanto lavava um copo.

— Estava no meio da madrugada, dormíamos em turnos, metade dos soldados ficava de guarda para os outros poderes descansar. Tentávamos chegar na base aliada para conseguir alimentos, tínhamos sido atacados dois dias antes e nosso acampamento fixo havia sido destruído. Somente um terço de nossos homens ainda estavam vivos. Naquela noite estavam acordados eu e mais quatro homens, embora eu só lembre o nome de um, Irwin. Ele era um bom homem, usava grandes óculos de grau e sonhava em voltar para a namorada. O garoto tinha só vinte anos e uma vida inteira pela frente, até aquela noite, claro. Estávamos sentados à fogueira, eu reclamava da falta de agua quando o primeiro tiro acertou a cabeça de Irwin. Foi uma visão terrível, imagine estarmos conversando aqui e agora e minha cabeça simplesmente exploda.

— Deve ter sido horrível.

— Não tanto quanto o que aconteceu a seguir. Eu me joguei no chão, os tiros vinham da escuridão, tentei atirar mas não conseguia ver ninguém. Estavam todos escondidos entre as árvores. A maioria morreu enquanto dormia, nem tiveram a chance de acordar. Eu rastejei e quando tive a oportunidade corri em direção à mata. Eu estava com ódio, uma raiva que é difícil até de explicar. Minha ideia era matar quem aparecesse na minha frente, eu estava com a metralhadora em punho e pronto para atirar, e foi ai que eu topei com um deles.

As Pontes InvisíveisWhere stories live. Discover now