Solidão pt. II

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            Charlie acordou depois de uma longa e dolorida noite de sono. Não estava tão frio, porém também não estava calor, a primeira coisa que fez ao abrir os olhos foi pegar o celular, marcavam onze e vinte da manhã, tentou ligar para Jennifer – caixa postal.

Ele já sabia o que precisava fazer, iria até o Euphoria's e conversaria com Isaac. Ele provavelmente já estava mais calmo, Charlie torceu para que pelo menos ele estivesse lá. Ele se levantou e vestiu uma calça preta e uma camiseta bem grande para esconder os ferimentos. Olhou de relance sua cara no espelho, estava um pouco menos inchada e consideravelmente mais roxa do que no dia anterior, pensou em usar uma maquiagem da Justine mas logo abandonou a ideia.

Quando passava no corredor ele olhou por um segundo a porta entreaberta do quarto de Justine. Torceu que durante a noite Chuck tivesse aparecido e eles tivessem feito as pazes, porém não. Justine estava desmaiada na cama vestindo uma calcinha vermelha e nada mais. A ideia de que Justine voltaria a ser como ela era antes remexeu o estomago de Charlie, não gostava quando ela agia daquele jeito, parecia que não dava valor a si mesma.

Ele desceu as escadas e tomou um copo de leite gelado. Pensou em fazer comida, porém desistiu. Procurou na internet qualquer fast-food que entrasse em casa. Encontrou um chamado "Foodnow", o tempo médio de espera era de 35 minutos e tinha nota três de cinco estrelas.

- Bom o bastante – disse ele para si mesmo, orgulhoso por fazer o pedido de uma refeição bem balanceada entre gordura de porco e um infarto.

Pensou que não queria comer a seco e encomendou também um refrigerante. Enquanto esperava sentou-se no sofá e ligou a televisão. Buscava algo que tirasse o foco de seus problemas pessoais, porém tudo que estava passando eram reality shows estúpidos e programas sem nenhuma base trabalhada. Coisas como programas clichê de detetives e talk-shows sem graça. Ele se deitou no sofá e deixou no noticiário, começou a mexer no celular, notou que havia uma mensagem de Jennifer da noite passada. Uma rara ocasião em que Charlie conseguiu dormir cedo, mas também já era de se esperar depois de apanhar tanto.

Jengirl3: Boa noite, sonha comigo.

Charlie sorriu sozinho, ela era muito atenciosa, ninguém havia sido assim com ele antes, era bom se sentir especial, e ele não sabia dizer o quanto era bobo.

CharlieVG1990: Bom dia, sonhei com você – mentiu.

De qualquer jeito ela iria descobrir a mentira, mas ele queria agrada-la, faze-la se sentir especial também. O noticiário mostrou uma imagem do edifício em que Charlie se encontrava no dia anterior, ao ver aquilo, Charlie imediatamente aumentou o volume.

- Foi encontrado nessa manha na antiga fábrica de cerveja Wülerberg o corpo do policial Anthony Briggs Padilla. O policial foi encontrado por um catador de lixo já sem vida, suspeita-se que ele teria cometido suicídio pulando do terceiro andar do edifício que hoje está desativado. O lugar costuma ter um vigia que, até por onde se sabe, não foi trabalhar na noite de ontem, o vigia ainda vai ser ouvido pela policia – a moça fez uma pausa e colocou a mão na orelha. – Anthony deixa para trás uma mulher e duas filhas de um e três anos de idade.


Charlie tinha uma humanidade que nem ele mesmo sabia entender, mesmo que aquele homem o tivesse amarrado dentro de um porta malas e o levado para um lugar abandonado onde um outro homem havia quase o matado, mesmo assim Charlie se sentia mal ao saber que ele estava morto. Já era a segunda pessoa que morria por sua causa, ele sentiu uma reviravolta no estômago.

A campainha tocou.

Charlie se levantou do sofá e foi até a porta, o entregador era um asiático com cara de quem odiava o trabalho. Ele trouxe a máquina de cartão e Charlie pagou no débito. A comida realmente estava ótima, parecia um jantar de domingo daqueles que se reúnem toda a família – o tipo de jantar que Charlie nunca teve.

Ele se vestiu, iria até o Euphoria's de um jeito ou de outro. Precisava confortar Isaac, saber o que iria fazer ou não. Ele saiu pela porta e não a trancou, Justine acordaria logo e ele não precisava se preocupar com isso. O clima estava agradável, ele colocou o fone de ouvido, colocou no modo aleatório, a música "Revolver - Still" começou a tocar, o telefone voltou pro bolso e ele continuou andando. Ele gostava dessa musica, lembrava o fim de uma festa, o salão vazio, a musica tocando não tão alta, os restos de comida e os vestígios da noite anterior, um único casal continua dançando de olhos fechados, quase que não tocados pelo tempo, não tocados pelo mundo.

- You know i still... still... here – cantarolou.

Não era horário de pico, os metrôs estavam vazios, o que era bom. Ele sentou no banco e ficou observando a plataforma escura do outro lado, pensou no que diria a Isaac, chegaria sutil ou seria grosso, exigiria uma resposta – Charlie poderia ameaça-lo. Até pensou nas palavras que ele usaria.

- Isaac, se você contar a alguém sobre isso, você vai ser o próximo. Dois já morreram, e eu gosto mesmo é do numero três – ensaiou Charlie em sua mente.

Na verdade era uma ideia idiota, Isaac gostava de Charlie e o ajudou como pôde. Charlie não poderia julga-lo por não estar bem depois disso, se nem ele mesmo ficou bem depois da primeira vez que aconteceu – se lembrou de Jennifer no ônibus. – Quem diria que algo tão ruim traria algo tão bom quanto Jennifer. Charlie até sorriu sozinho no metrô, um velho de cabelos brancos o encarava com desdém. Talvez por causa da sua cara arrebentada ou sua barba que lembrava um terrorista, as vezes nessas situações Charlie tinha vontade de ir lá e toca-lo, fazer ver tudo que já acontecera em sua vida, provar que ele era humano também, que sofria e sorria como qualquer outro que ele já conhecera, Charlie acreditava que o erro do homem era se preocupar muito com a vida dos outros ao invés de se preocupar com a própria.

- Nunca deixe que algo que tu não gostas ocupe o mesmo ou maior espaço na tua vida do que aquilo que tu gostas – disse o pai de Charlie uma vez. – Se você não gosta de algo, não critique, não perca tempo com isso, ao invés de brigar com alguém por causa do jeito que essa pessoa leva a vida, vá fazer algo que te agrada. Nunca filho, nunca julgue as pessoas.

Charlie levava as palavras de seu pai no peito, mas parece que o resto do mundo não entendia o que era isso de viver em paz. Talvez fosse esse o motivo de Charlie se sentir mal pela morte de Anthony, talvez ele acreditasse lá no fundo que todo mundo tinha uma solução.

Charlie chegou em frente ao Euphoria's porém as portas encontravam-se fechadas. Isso era estranho já que era horário de trabalho e Isaac provavelmente deveria estar ali, ele pegou o celular e discou o numero de Isaac – caixa de mensagens. – Ele fechou as mãos em forma de concha e colocou no vidro da porta para ocultar os reflexos do exterior e tentar ver a parte de dentro. Ele viu uma movimentação no quarto dos fundos, havia alguém ali dentro.

Ele bateu na porta duas vezes mas ninguém atendeu, ninguém apareceu, não houve mais movimentação alguma. Charlie começou a desconfiar de que fosse lá quem estivesse lá dentro, provavelmente não deveria estar ali, ele chegou a pensar que poderia ser alguém do grupo que havia sequestrado ele – os Sombras. – mas era muito egoísmo pensar que um estranho no bar de Isaac estaria atrás dele, com certeza era um ladrão, mas Charlie ainda não havia sido demitido, iria fazer o que qualquer um faria.

Ele pegou da sua carteira a chave reserva que Isaac lhe dera, ele não queria entrar antes mas agora era questão de caráter, fosse o que Isaac faria com o que ele sabia, Charlie não poderia deixar alguém rouba-lo na cara dura. Não conseguiria ir pra casa com a consciência limpa. Ele inseriu a chave e girou devagar, abriu a porta com cuidado para que não fizesse muito barulho, deu um passo de cada vez, devagar para que ninguém o ouvisse.

O interior do Euphoria's estava mergulhado no imenso silêncio, Charlie podia ouvir a própria respiração, procurou algo com o que pudesse se armar, encontrou um ferro com o qual posicionavam contra a porta para impedir arrombamento – não estava contra a porta. – Ele avançou com passos silenciosos, segurou o ferro em posição de ataque, enquanto se aproximava da sala dos fundos, preparava-se mentalmente para uma luta, já estava quase na porta, decidiu entrar uma vez, sem pestanejar, deu grito e adentrou o depósito.

O grito de Charlie acordou Isaac que dormia em um cobertor no chão do depósito, ele olhou para cima confuso e com a visão ainda embaça de alguém que acaba de acordar, Charlie ainda segurava a barra de ferro, quando percebeu, sentiu-se envergonhado.

As Pontes InvisíveisWhere stories live. Discover now