CAPÍTULO 3

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Arthur e Morgana almoçavam no salão do castelo. Morgana às vezes inventava alguma indisposição como desculpa para não ter que descer até o salão e fazer as refeições com o irmão, mas sabia que não podia abusar desse subterfúgio. Ademais, acabava sendo pior, pois ele invariavelmente ia até seu quarto para saber como ela estava se sentindo. Hoje seria ainda mais desagradável, pois eram apenas os dois — Lady Viviane almoçara mais cedo em seus aposentos, pois teria a primeira aula com Merlin, e os poucos cavaleiros que Arthur trouxera para os festejos da corte já haviam regressado às suas terras.

"Lady Morgana, estas perdizes foram preparadas especialmente para vós — e esperai só até verdes a sobremesa!" falou um Arthur ansioso pela reação dela.

Ele sempre a tratava por milady, ou Lady Morgana, nunca por irmã. Talvez porque a última coisa que quisesse era que fossem irmãos. Observou-a discretamente. Como ela era encantadora, os cabelos negros e lisos divididos ao meio, presos atrás da cabeça, os olhos negros tão incomuns por ali (e o traço que os marcava como membros da mesma fratria, os olhos de Igraine), — até seu ar severo era encantador. Era um deleite para Arthur o simples fato de estar perto dela, mimá-la, olhá-la.

Quando Merlin lhe contara que ele era filho de Uther, o rei recém-morto, e que, na condição de herdeiro, deveria assumir o trono de Logres, Arthur reagiu com assombro e pavor. Como podia ser? Pois se ele era filho de Sir Ector, um vassalo do rei, e irmão de Kay! Mas não, descobriu que não era. De repente, após dezesseis anos, foi apresentado àquele estranho homem alto e magro, que portava uma insólita veste marrom com capuz, dizia se chamar Merlin, e se intitulava conselheiro real. Vinha para lhe dizer não só que aquela não era sua família de origem, mas que desta restava apenas uma irmã. Irmã essa que há anos não era vista por ninguém do reino, pois havia se retirado para Avalon, terra de seus ancestrais. Era quatro anos mais velha que ele, e não compartilhavam do mesmo pai. Portanto, ela a nada teria direito da herança de Uther. Apesar disso, Merlin aconselhara Arthur a, por uma questão de justiça, devolver-lhe o Castelo de Tintagel, que Uther tomara do pai dela, Gorlois — assim, ela teria uma propriedade, um teto para abrigá-la.

"Que grande tolice, Merlin! Ela é minha irmã, e tudo o que é meu, é dela! Não a quero vivendo naquele penhasco medonho que é Tintagel. Vou trazê-la para morar aqui comigo, em Camelot! Na condição de irmã do rei, nada mais natural que faça parte da corte."

"O lugar dela não é em Camelot, Alteza — não é seguro!"

"Bobagens. Que perigo ela poderia correr em Camelot, sob a custódia real?"

"Não ela, Alteza. Vós. E Camelot."

Arthur riu. "Não vos entendo, Merlin. Somos o reino mais poderoso da Bretanha. Logres conseguirá se defender de qualquer ataque."

"Camelot ruirá de dentro para fora, Majestade, não sob ataque estrangeiro. Quanto à Tintagel, se não devolverdes o que é dela por direito, não importa com que boa intenção, ela poderá sentir-se injustiçada."

"Merlin, por favor, providenciai para que ela venha. É a única família que me resta, e a quero comigo."

E ele a teve consigo, por cima de toda a visível frustração de Merlin. Arthur sentia-se orgulhoso de mostrar ao seu conselheiro que o rei, afinal, era ele. Passados alguns meses, já conseguia sentir-se à vontade no papel. Seu ar tranquilo em nada lembrava a expressão de pânico com que acompanhara a própria coroação.

Ao sentir o olhar da irmã em cima dele, Arthur voltou de seus devaneios. Os almoços com Morgana eram silenciosos, assim seus pensamentos sempre vagavam livres, mas nunca se distanciavam dela. Já haviam sido servidos de sobremesa sem que Arthur sequer se houvesse dado conta.

"Tem sido agradável ter Lady Viviane convosco, milady?" ele perguntou, numa tentativa de entabular uma conversação.

"Sim, Alteza, agradeço-vos a atenção."

"Sabeis que é sempre um prazer para mim!"

Morgana baixou a vista e voltou a comer em silêncio. A mente de Arthur perambulou outra vez. De repente viu-se na beira do lago a algumas milhas do castelo, esperando a embarcação que traria sua irmã. Lembrava-se bem de sua ansiedade ao avistar o barco que se aproximava da margem, e de vê-la pela primeira vez, desembarcando. Como era bela! Parecia receosa, olhando para o chão o tempo inteiro, sem nunca encará-lo, e trazendo consigo apenas uma pequena canastra, o que fez o coração de Arthur se apertar: Uther não cuidara para que ela usufruísse dos luxos devidos à filha de uma rainha? (Morgana fitava o chão porque o odiava e detestava olhá-lo, mas isso Arthur não podia saber. E tanto mais Morgana o achara atraente e formoso naquele primeiro encontro, tanto mais a irritava olhar para ele e confirmar sua beleza. Isto a surpreendia até hoje: como alguém tão parecido com o Cavalão podia ser tão bonito? Os mesmos cachos louros, o queixo um pouco pontudo que, nele, caía bem. Mas, não, Arthur não era igual a Uther — era fácil identificar alguns traços de Igraine em seu rosto, em especial os olhos escuros, o que entristecia Morgana: não queria ter nada a ver com ele.)

Arthur ouvira de Merlin que sua mãe, e também mãe de Morgana, Igraine, fora belíssima, e que despertara em Uther uma paixão tão furiosa que o fizera agir de maneira abominável e quebrar todas as leis morais a fim de tê-la para si. Olhando para Morgana, não é que passasse a aceitar os malfeitos do pai, mas podia enfim visualizar a beleza de sua mãe. Morgana se parecia bem com o que se espera de uma fada, a fada que ela de fato era.

Como a refeição parecia ter mesmo chegado ao fim, Lady Morgana pediu licença para se retirar, e Arthur, que não conseguia pensar em qualquer motivo para reter a irmã ali, concedeu-a, afinal. Com sorte, receberia a visita de Merlin dali a pouco — mandara chamá-lo, esperava que ele pudesse vir.



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