LIVRO 2 -- CAPÍTULO 3

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Lady Guinevere estava deitada quando o marido entrou no quarto, à noite. Imediatamente fechou os olhos e fingiu dormir. Ela o vinha evitando desde a véspera, mas, depois do funeral daquela manhã, redobrara os esforços. No dia anterior, Arthur saíra bem cedo em busca de Lady Viviane, deixando uma Guinevere aflita e amedrontada para trás. Ela não tinha muito contato com a dama de companhia de Lady Morgana, mas achava-a uma mocinha muito educada e simpática, e preocupava-a o seu sumiço. Ao mesmo tempo, sentia medo. Viviane fora sequestrada? Por quem, para quê? Os demais moradores do castelo corriam perigo? Inquieta, apreensiva, postou-se na janela do quarto, que tinha vista para o jardim, ansiosa pelo retorno dos homens e pelas notícias que trariam.

Avistou Morgana embaixo, também a esperar, mas não pensou em juntar-se a ela. A irmã do rei não parecia simpatizar consigo. Fazer-lhe companhia seria apenas alimentar silêncios constrangedores por sabe-se lá quantas horas. E gostava da janela. O campo de visão era bastante amplo, seria a primeira a enxergar os homens voltando — o que aconteceu antes do que imaginava.

Arthur vinha a pé, e trazia Lady Viviane nos braços. Desmaiada? Morta? Ou apenas sem forças para andar? Não via bem daquela distância, mas as roupas e cabelos da moça pareciam encharcados. Viu quando Morgana aproximou-se de Arthur e teve a impressão de que o corpo da cunhada tremia, convulso. Sacudido pelo choro? Havia acontecido uma desgraça, portanto. Era mesmo um cadáver, aquilo que seu marido trazia.

O rei confiou o corpo a Sir Lancelot, que dirigiu-se ao castelo, seguido pelos outros homens, deixando Arthur e Morgana para trás.

O primeiro impulso de Guinevere foi descer correndo para se inteirar do que acontecera, em que circunstâncias Viviane fora encontrada. Mas uma curiosidade mórbida pelo que acontecia no jardim a deteve.

Observou Arthur tomar as mãos de Morgana nas suas. Por um tempo, conversaram assim, frente a frente. Ele então puxou um objeto de dentro da cota de malha e mostrou a ela. Continuavam a se falar. Sobre o quê? Que objeto era aquele? Por que não corriam para dentro, para cuidar do corpo, tomar providências? Se abraçaram, e... se beijaram?! Não havia dúvidas, ele estava beijando a própria irmã, como... como se fossem amantes! Há quanto tempo?

Por alguns segundos, quedou tão atônita que não sentiu nem pensou em nada. Estava paralisada na cadeira, diante da janela. Alguns sentimentos pipocaram um após o outro, sem que ela conseguisse elaborá-los ou fixar-se em nenhum.

Rejeição (com poucas semanas de casada, descobria que era traída!), menos-valia (via-se inferiorizada, sem-graça, comparada à sedutora Morgana), ódio (como ousavam fazer isso com ela?), nojo (dois irmãos! Era abominável! Não tinham vergonha?!), humilhação (quantos saberiam? Estariam todos falando pelas suas costas desde sempre? Rindo-se dela, achando-a uma coitadinha, ou uma idiota?).

O pensamento de que Arthur poderia regressar a qualquer momento despertou-a do transe. Não queria encontrá-lo. Foi para seu próprio quarto e trancou-se lá. Se ele mandasse perguntar por ela, avisaria que estava indisposta. Que não era nada sério, mas gostaria de descansar e não ser incomodada. Ele estaria ocupado demais com a tragédia para prestar-lhe maior atenção.

Passou o resto do dia enclausurada, sem tomar conhecimento da movimentação do castelo. Vieram-lhe anunciar sinistro, cuja notícia ela fingiu estar recebendo pela primeira vez, simulando consternação. Trouxeram-lhe o almoço. E ela não se decidia a sair.

Deitada na cama, mãos cruzadas no peito, a olhar o teto, analisava suas opções. Que se resumiam a uma. Fingir que não vira nada. Estava casada, era a Rainha de Logres. Até que a morte a separasse do rei. Não havia o que ser feito. Se desse um escândalo, teria que permanecer casada ainda assim, e só teria a perder.

À noite, bem mais calma e já resignada, voltou ao quarto do marido e lá permaneceu. Mas, na manhã seguinte, quando entrou com Arthur no grande salão e este a deixou para trás para desfazer-se em cuidados com a irmã, a humilhação a esmagou. Abandonada diante de todos! Nem as aparências ele se preocupava em manter? Lançou-lhe vários olhares de desaprovação, pedindo-lhe mudamente que não fizesse aquilo, porém ele nem percebeu. Só enxergava Lady Morgana.

Ao menos, o sorriso que Sir Lancelot — incumbido de conduzi-la — lhe dirigiu foi bastante simpático. Não parecia um risinho de deboche, de quem zombasse dela. E a mesura respeitosa com que ele a saudou antes de lhe oferecer o braço denotava que ela ainda inspirava respeito. Até quando?

Talvez exagerasse. Talvez ninguém estivesse estranhando que Arthur amparasse a irmã, visivelmente abalada. No fim das contas, preferiu aquele arranjo a passar o enterro de mãos dadas com o marido, fingindo que tudo estava bem. Pois, de agora em diante, era tudo uma questão de aparências. Seu casamento terminara antes de começar.

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