CAPÍTULO 14

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Às nove da manhã, a Catedral de Santo Estêvão mal dava conta de acomodar tantos presentes às bodas reais. Arthur, diante do altar, era acolhido pelo sorriso do bispo. Guinevere já podia ser avistada entrando na nave principal da igreja, conduzida pelo Rei Leodegan. Merlin, sentado involuntariamente ao lado de Lancelot, não pode deixar de notar o embevecimento com que este acompanhava a entrada da futura rainha. Estaria Merlin vendo o que não havia para ver, impressionado por visões nebulosas, caçando bruxas que não existiam? Ou percebia com dolorosa clareza?

"Guinevere beijava um cavaleiro que não era vós, um cavaleiro que se virava contra vós, e levava consigo, para vos atacar, grande parte de vossos próprios cavaleiros." "Perdi todos os meus amados sobrinhos pelas mãos daquele que, por toda a vida, considerei como meu melhor amigo." Essas frases, trocadas na realidade ou em sonho, estalavam, intrusivas, irreprimíveis, em seu pensamento. Duas peças de um quebra-cabeça pareciam se encaixar. Em uma antiga visão, um cavaleiro de identidade misteriosa beijava Lady Guinevere, e incitava outros cavaleiros contra o rei. Em um sonho recente, um cavaleiro de identidade conhecida — Sir Lancelot — matava cinco homens, impedindo-os de socorrer Arthur, deixando-o à mercê de um ataque. A visão e o sonho referiam-se à mesma pessoa? Caso contrário, teria que admitir mais de um cavaleiro traidor. Com sorte, a cerimônia seria curta. Ao mesmo tempo em que tinha ímpetos de manter Lancelot sob vigilância, sentia aversão a sentar-se ao lado do cavaleiro.

Viviane estava sentada à sua frente, ao lado de sua senhora, como lhe cabia. Quando ela olhou para trás para observar a entrada da noiva, seu olhar encontrou o do mago, distraindo-o de seus pensamentos e atraindo sua atenção inteiramente para ela. Ele lhe sorriu quase sem sentir, enlevado, mas ela baixou a vista e logo voltou o olhar para Lady Guinevere, a aproximar-se de braços dados com o pai. É isto. Merlin suspirou, desanimado. Eu não passaria impune a um atrevimento como aquele.

Durante os dias que se seguiram ao beijo, ele, apesar de todo o temor, cultivara uma tímida esperança, não de que ela retribuísse seus sentimentos — isso, não! Por que ela almejaria alguém tão sem atrativos físicos ou nobiliárquicos como ele? —, mas de que ela relevasse sua ousadia, esquecesse o incidente. No entanto, como ele temia, ela estava mesmo ofendida.

Merlin não fazia ideia de que Viviane não lhe sustentava o olhar devido a um malfeito dela, não dele. Não arrumava coragem de encará-lo após sua senhora envolvê-la numa cilada contra ele sem que ela emitisse o menor protesto.

Alheia a tudo isso, Guinevere prosseguia seu caminho em direção ao altar, maravilhando boa parte dos presentes com seu porte gracioso, sua figura esguia, seus cabelos louros e fartos. Alguns cochichavam sobre que lindos herdeiros uma união de tão bela princesa com tão atraente rei não iria gerar. Arthur a recebeu e, antes de virar-se para o bispo, lançou uma olhadela à irmã. Dessa vez, Morgana sustentou-lhe o olhar. E seus olhos estavam marejados. Perturbado, Arthur virou-se bruscamente para o altar, temendo que seus olhos também se enchessem d'água.

***

Lady Morgana foi uma das primeiras na fila para cumprimentar os recém-casados. Com ensaiados votos de felicidade, entregou uma caixa a Guinevere sem se ater a maiores explicações. Não queria que as pessoas ao redor vissem ou ouvissem sobre o conteúdo do pacote. Viviane, por exemplo, estava próxima, e sabia de suas intenções vingativas. Ao saber que dentro da caixa havia uma poção, logo começaria a especular. Não! Quando, mais tarde, Guinevere abrisse a caixa em seu quarto, a sós ou na presença de Arthur — que nunca vislumbraria maldade num presente seu, Morgana tinha certeza —, encontraria a garrafa e uma nota explicativa sobre a poção da fertilidade e a dosagem necessária.

Guinevere agradeceu com um sorriso e uma mesura, mas Arthur, mais efusivo, abraçou-a, o que a desconcertou. Com o pretexto de que muitos ainda queriam cumprimentá-los, apressou-se em se afastar. Ela estava desconfortável desde que acordara, reagindo de modo inesperado, como quando seus olhos se encheram de lágrimas ao ver Arthur receber Guinevere no altar. Mas nunca se debruçara sobre suas próprias emoções, e por isso mesmo tinha dificuldade em reconhecê-las ou nomeá-las. Cedo aprendera a varrê-las para debaixo do tapete, como estratégia de sobrevivência. Foi atrás de uma bebida.

Vale sem RetornoDove le storie prendono vita. Scoprilo ora