LIVRO 2 -- CAPÍTULO 14

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A diplomacia é feita de acordos tácitos e vias indiretas. Agora, por exemplo, a Rainha Guinevere queria visitar a família em Carmélide, e Arthur não tinha qualquer interesse em empreender também ele aquela viagem. Sendo assim, ela precisava de um acompanhante de confiança, que servisse ademais como representante do rei.

A escolha óbvia seria Sir Kay. Ele era seu irmão, seu substituto mais indicado. Sabia, no entanto, que enviar Kay numa longa viagem de carroça ou a cavalo seria uma penitência para seu estômago delicado. Suas crises vinham-se amiudando, inclusive, e Arthur observou que o irmão emagrecera. Mas, se passasse por cima de Kay e encarregasse Sir Lancelot diretamente, seu irmão ficaria enciumado por não haver sido o primeiro a ser lembrado. Pior, só se Arthur se justificasse confessando a Kay que fizera isso por conta de sua saúde frágil. Nada o humilharia mais. Na verdade, fora pensando na saúde do irmão que o delegara para senescal. Assim, mantinha-o ocupado com o bom andamento cotidiano do castelo e o afastava das missões externas – mas começava a se perguntar se, afinal, fora mesmo uma boa ideia, pois Kay passava o dia a empanturrar-se de queijo e vinho, e a botar tudo para fora, depois.

Para satisfazer a todos, tinha que incumbir Kay da viagem e ansiar por que este se negasse – com mil salamaleques e agradecimentos pela honra do convite –, sob a alegação de que não poderia afastar-se de suas responsabilidades como senescal. Ou que Lancelot, sempre ciscando em busca de uma aventura, se oferecesse, requisitando para si a honra da missão, sob o mesmo pretexto de que Kay não deveria afastar-se por tanto tempo de suas obrigações no castelo.

Se nenhum dos dois tivesse essa presença de espírito, pior para Kay. Fosse ele menos melindroso, seria tão mais simples!

Assim, chamou-os à tarde para um passeio a cavalo pelos bosques, e, enquanto se divertiam tentando caçar uns gansos, o rei comentou com eles sobre o desejo da rainha de viajar, e pediu ao irmão que a acompanhasse. Mal Kay, perdendo as cores do rosto, teve tempo de balbuciar um, "Às suas ordens, Majestade!" ("Não, estúpido, dizei que não!" Arthur gritava em pensamento, exasperado), e Lancelot interveio, salvando a situação.

"Majestade, eu gostaria de me oferecer como acompanhante da rainha. Sei que Sir Kay é vosso homem de confiança, mas, para viajar, teria que deixar de lado suas funções como senescal do castelo. Já eu me encontro sem qualquer função, e até um pouco entediado. Nada tenho feito, a não ser matar o tempo. Caso me considereis digno da missão, estejais certo de que não trairei vossa confiança."

Não tocou no assunto da saúde de Kay, embora Arthur não tivesse dúvidas de que Lancelot esperava que tal também fosse levado em consideração. Apreciou a discrição do amigo. Virou-se a seguir para o irmão:

"O que achais, Sir Kay? Fostes minha primeira escolha. A missão já é vossa, e só vós podeis abdicar da incumbência em favor de Sir Lancelot."

"Ah... sim... Sim, Majestade, sabeis o quanto me sinto enaltecido por vossa confiança e preferência, mas acredito que Sir Lancelot tem razão quando aponta que o castelo iria sofrer passando tantos dias sem seu senescal, de modo que... abro mão desta honra em favor de nosso bom amigo Sir Lancelot, em cujas capacidades para me substituir eu confio sem reservas!"

Arthur aquiesceu com a cabeça, sorrindo. Funcionara à perfeição. Paz!

Ele ainda custava a acreditar em tal golpe de sorte. Dias inteiros sem a presença da esposa, a quem prestar contas! Preocupado apenas em usufruí-los ao lado de Lady Morgana. A sós todo o tempo, para abraçá-la o quanto quisesse, sentir o calor daquela pele morna que recendia a flores, dia e noite. Enquanto Kay e Lancelot se voltavam com balbúrdia para o que julgavam haver sido uma raposa que passara correndo, Arthur deixou-se ficar para trás, distraído, imaginando os passeios, os piqueniques, os beijos... A vontade que tinha era de abandonar os amigos e lançar-se ao castelo para comunicar as boas novas a sua amada.

*

Lancelot voltou a entregar-se à caçada com ainda mais ânimo que aquele que lhe era costumeiro. Era com desafogo que recebia essa missão, que obtinha uma ocupação e um pretexto para viajar.

A morte de Lady Viviane o abalara muito. Eram amigos de infância, ele a considerava qualquer coisa entre uma prima e uma irmã caçula. Tomar-lhe o corpo morto nos braços, ainda encharcado, e conduzi-lo ao grande salão, mirar-lhe o cadáver no ataúde, fora muito doloroso. E assustador. É natural que um idoso morra. Mas aquele cadáver de menina parecia sussurrar, "Sou eu, mas bem poderia ser vós! Nós, jovens, também morremos!" Porém, o que mais o acabrunhava era a culpa. Fora ele que indicara o nome de Lady Viviane como dama de companhia para a irmã do rei, e era inevitável pensar que, não fosse ele, ela ainda estaria viva e feliz em Brioge.

Quando sir Dionas chegara a Camelot, teve vontade de inventar um pretexto qualquer para não aparecer diante dele, mas seria o cúmulo da covardia, e não agiria como um covarde. Na hora em que o pai da falecida abraçou-se a ele, chorando, não soube como fez para conter-se e não cair também em pranto. Mas não poderia. Sir Dionas era velho, frágil, todos lhe perdoariam as lágrimas. Já ele viraria o "cavaleiro chorão".

Esta missão seria uma oportunidade de distrair-se, de parar de se torturar, voltar o pensamento para algo além. Agarrou-se a ela com unhas e dentes, pois. Não perderia a chance para Kay. Aliás, quando viu com que cara este recebera a incumbência, percebeu quão fácil seria tomar-lhe o lugar. Não só ele não oporia resistência, como, ainda que não admitisse, ficaria agradecido. Chamou a atenção de Arthur para as responsabilidades de Kay como senescal do castelo e achou de bom tom encerrar sua argumentação aí, sem nada acrescentar sobre o estômago eternamente em protesto do amigo. Aquilo ficaria subentendido, não precisava explicitar. Tinha certeza de que Kay, quiçá Arthur, receberia a proposta com alívio. Esperou que o rei consultasse o irmão — já lhe havia oferecido a missão, não poderia desincumbi-lo assim, sem mais, como quem recebesse proposta melhor. Obtido o aval de Kay, poderia, portanto, partir em viagem, escoltando a linda Rainha Guinevere. Buscou afastar esse pensamento: não só ela era sua soberana, mas a esposa de seu melhor amigo. No entanto, apenas apreciar-lhe a beleza não haveria de fazer tanto mal...

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