LIVRO 2 -- CAPÍTULO 6

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Morgana não conseguiu manter os olhos abertos por muito tempo após ser despertada pelas batidas de Arthur na porta. Minutos depois, o sonho por que ansiava tanto quanto temia reiniciou do ponto em que fora interrompido.

A mão que Arthur pousara em seu seio subia e descia com o arfar de sua respiração. Ele também ofegava e estava mais corado que o usual. Ela sempre admitira, ainda que a contragosto, que ele era um homem bonito, mas nunca antes o achara tão lindo, talvez por jamais o haver observado tão de perto e por tanto tempo. Os cachos dourados pareciam tão sedosos! Sem pensar muito, afundou ambas as mãos nos cabelos dele, em busca de confirmação. Sim, eram macios.

Arthur sorriu e a encarou com aqueles olhos negros que, ela sabia, eram iguais aos dela, os olhos que ambos herdaram de Igraine. A lembrança de que compartilhavam da mesma mãe reavivou seu conflito e novamente fê-la querer esconder-se, mas não pode, presa à visão dos lábios dele, que se aproximavam para outro beijo.

A seguir, ele a deitou na relva e, ajoelhando-se a seu lado, passou a despi-la devagar. Ela não opôs resistência. Não sentia medo nem vergonha. Nunca antes estivera intimamente com um homem, mas lembrava-se do que lhe explicaram sobre isso as sacerdotisas de Avalon, e sabia o que aconteceria então.

Quando ele fez menção de tirar a própria camisa, ela acordou-se subitamente. Talvez, por nunca visto um homem sem roupas, não tenha sido capaz de imaginá-lo, e o sonho acabou ali. Mas nem se deu conta disso, angustiada que estava. Sentia-se patética: seria tão carente que se rendia à primeira manifestação de afeto?

Deveria ir-se embora! Longe dos olhos, longe do coração. Desaparecer no ar, que bom seria! Mas tal não estava ao alcance das fadas. Elas nada mais eram que guardiãs de antigas poções, transmitidas de uma geração a outra, desde sempre. Todo o seu poder estava abrigado no códex depositado no fundo de sua canastra.

Lembrou-se de Merlin, de quem tanto zombara por viver numa caverna. Aquela vida reclusa lhe parecia subitamente invejável. Com algum cinismo, pensou que enclausurar-se ela mesma no Vale sem Retorno poderia ser a solução para seus próprios problemas. Mas pensar no mago era-lhe doloroso. E inútil: seu arrependimento de nada valia para trazê-lo de onde quer que estivesse. E se ela retornasse para Avalon? Para a vida triste e solitária de Avalon?

Tantas horas de confinamento naquele quarto estavam-na deixando claustrofóbica. Sentiu uma aguda falta de ar e decidiu descer aos jardins, onde, acreditava, respiraria melhor.

Era muito cedo, o sol mal havia nascido. Todos estavam recolhidos, não cruzou com ninguém nos corredores. Como no dia fatídico, saiu pela cozinha, para evitar as sentinelas do portão principal. Ao abrir a porta, avistou o céu rosado e inspirou fundo a corrente de ar gelado que a apanhou. Só ao sentir a umidade da relva sob os pés, apercebeu-se de que, na pressa, saíra descalça. Era agradável pisar na grama. Abriu bem os dedos, para que as folhas se entremeassem entre eles, e sorriu.

Quis andar, andar sem trégua, sem olhar para trás, virar uma peregrina desgarrada de tudo. Mas não ousaria. Ouviu passos atrás de si, ao longe. Virou-se. Arthur! Seu primeiro impulso foi esconder-se atrás de uma árvore. Porém, ao lembrar-se de seu sonho, deteve-se. Temia que, imitando-lhe o início, desse-lhe poderes de profecia, fazendo todo o resto transcorrer igual. Além do mais, Arthur já a vira.

"Lady Morgana!" ele vinha gritando, afogueado pela corrida para alcançá-la, "Lady Morgana!" Por fim, parou diante dela, exclamando, "Não sabeis como me alegro em vos encontrar aqui! Estava ansioso para saber como estais, mas não consegui ainda vos ver desde o enterro!" Havia sinceridade em sua voz e seu olhar, Morgana pode perceber.

Mais uma vez, ele se preocupava. O único, em muitos anos, a demonstrar-lhe afeição, a buscar agradá-la, fazê-la sentir-se em casa. Que se condoera com que ela não tivesse amigas e mandara buscar Viviane. Suspirou ao lembrar-se da ama. Morgana não queria perder aqueles cuidados, fugindo ou rechaçando-o. Ali, tomou sua decisão. Respondeu, com uma firmeza de que ela mesma admirou-se, "E eu, no entanto, vos vi, milorde!"

"Vistes-me? Mas como...?" Arthur franziu o cenho, intrigado. "Se passastes o dia inteiro em vosso quarto! E certamente não me vistes pela janela, pois tampouco saí, preso no castelo a resolver todo esse embaraço diplomático com Briogne, que..."

"Eu vos vi num sonho!" ela esclareceu, interrompendo-o.

"Sonhastes comigo?" O tom de Arthur era de uma incredulidade divertida, como se estivesse disposto a entrar num jogo de faz-de-conta. "E o que dizíamos?"

"Nada."

"Nada?" Sua surpresa só crescia. "Não nos falávamos?"

"Não." E, após alguns segundos de silêncio, talvez pesando as palavras, talvez reunindo coragem, "Nós nos beijávamos." Devagar, aproximou seu rosto do dele. "Assim," concluiu, e os lábios se tocaram.

Vale sem RetornoDonde viven las historias. Descúbrelo ahora