CAPÍTULO 20

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"Não confio em vós dois por razões óbvias." Morgana e Viviane estavam no quarto da primeira. Viviane acabara de lhe contar que ela e Merlin haviam concordado com o encarceramento no Vale sem Retorno. "Por que vos deixaríeis aprisionar tão mansamente?"

"Já vos disse, milady, prezamos mais um ao outro que nossa vida neste mundo. De nada nos vale teimar em permanecer aqui, em circunstâncias que não nos permitem ficar juntos."

"Ainda assim. Tanto amor, tanto desprendimento... Custo a crer. Como saber se apenas não vos refugiareis num canto qualquer, esperando o melhor momento de reaparecer? Escondidos num covil de onde possais me vigiar, me sabotar, enquanto eu vos creio presos no Vale? Não. Sinto muito. Tenho que vos ver entrar no cárcere. Dizei-me onde e quando, também tenho que estar lá, e vos observar."

"Milady..." Viviane começou a protestar debilmente.

"Dizei!" Morgana gritou enfurecida. Tinha certeza de que eles tencionavam passá-la para trás, mas ela não permitiria. "Se não disserdes, não ireis a lugar algum. Eu vos trancarei em vosso quarto. Posso fazer isso, alegando um castigo. Sou vossa senhora, ninguém me questionará. Trancar-vos-ei agora mesmo! Sereis vigiada dia e noite, e perdereis vosso encontro com o feiticeiro."

***

Merlin já havia atravessado a cortina de neblina que se abria em meio ao bosque, e podia ser visto do outro lado, desfocado, aguardando pela travessia de Viviane. Assim que ela se moveu em sua direção, sentiu algo a puxando com força para trás. Foi tão inesperado que ela, num primeiro momento, não reagiu. Olhou atrás de si. Morgana a segurava com força. Viviane deu um tranco, jogando o corpo para a frente, e conseguiu se libertar. Não tinha tempo para discutir ou questionar Morgana. Tinha que juntar-se a Merlin. Correu com ímpeto em direção à cortina, mas tudo o que conseguiu foi avançar alguns passos na própria floresta. A cortina não existia mais. Ou existia, mas não se abria mais para este mundo.

"Mas o quê... ?" Virou-se para Morgana. "Por que não me deixastes ir?", perguntou, num tom um pouco estridente, mas ainda ponderado. "Por que não me deixastes ir?", a voz distorcida. "Por que não me deixastes ir?", agora era quase um rugido, um ronco, um guincho de bicho ferido. Viviane tremia e, quando Morgana tentou lhe tocar o ombro, repeliu-a com um safanão: "Meu deus, era tudo mentira! Vós nunca tivestes a intenção de que fôssemos juntos, nunca! Usou-me para encarcerar Merlin, moveu-me como quem move uma pedra num jogo de tábula! É como me vedes? Uma pedra de tábula? Sabíeis que nunca teríeis poder para enfrentá-lo num confronto direto, portanto urdistes um plano em que ele usasse a própria magia conta si! O que vós pareceis não perceber, ou, se percebeis, não vos importais, é que não vos vingastes apenas de Merlin! Vingastes-vos também de mim! De mim, Lady Morgana, que nada fiz contra vós, que sempre fui vossa amiga — ao que me consta, a única amizade que fizestes em Camelot!"

"Viviane, parai de gritar e me ouvi! Vós sois minha amiga e eu vos amo, mas amo mais meu pai! Eu devia essa vingança a ele, eu esperei quase vinte anos por isso! Acreditais mesmo que eu iria proporcionar a Merlin que desfrutasse de férias vitalícias com sua amada? Não! Não poderia deixar que ele vos levasse, seria premiá-lo, não puni-lo! Não queria que houvesse sido necessário sacrificar vossa amizade, mas tendo que escolher entre vós e meu pai, sempre seria meu pai!"

Viviane aparentava estar mais calma, apesar de trêmula, mas essas palavras de Morgana reacenderam sua ira de modo quase literal — sentia labaredas subirem por dentro de seu corpo. Suas bochechas estavam afogueadas, um calor insuportável queimava-a no abdome, no peito, nas faces. Um ódio materializado em fogo.

"Vós escolhestes vosso pai, mas ele não vos escolheu, nem à vossa mãe! Entrou numa guerra da qual sabia que jamais voltaria, porque, ao sopesar a honra e os brios, achou que valiam mais que a esposa e a filha! Que defender a honra era prioridade maior que amparar vós duas. Sim, sabia que iria deixá-las desamparadas, e isso não o deteve. Ele tomou sua decisão. E essa não foi favorável a vós. Um pedido de desculpas a Uther teria mudado tudo, reescrito vosso destino. Um pedido de desculpas teria desarmado o rei. E, ainda que Uther não desculpasse Gorlois, não teria motivos para guerrear nem lhe tomar as terras. Não poderia condenar à pena máxima, à morte, um homem que saiu sem se despedir, e que acabou se desculpando por isso. Mais uma vez, repito, Lady Morgana, vós e vossa mãe não foram a prioridade de Gorlois, e por esse descaso não podeis culpar Arthur, Merlin, nem mesmo Uther! Vosso pai vos condenou!"

Por um momento, fez-se silêncio. Viviane parecia exausta após seu discurso inflamado. Uma hesitação brilhou muito rapidamente nos olhos de Morgana, como se uma dúvida houvesse sido plantada.

"Vosso pai está morto, Lady Morgana! Morto, morto, morto, morto!" Viviane voltou a falar, e parecia não se cansar de repetir a palavra. "E eu, vossa amiga, estou viva! O que achais de preocupar-vos com os vivos, para variar? Que tal preocupar-vos com aqueles para quem ainda podeis fazer alguma diferença?"

"Prestai atenção, Viviane! Não deixá-la ir foi também uma forma de proteger-vos! Sois muito jovem e muito bela, em breve tereis dezenas de pretendentes — pretendentes adequados, pretendentes que agradarão vosso pai, não um esquisito que vos levaria para viver numa caverna! Ireis casar, ter vossas terras e castelo para cuidar. Merlin em pouco tempo nada significará para vós. E, quando isso acontecer, vireis me agradecer por vos haver preservado de uma vida no cárcere, que só vedes agora como desejável porque a paixão vos impede de julgar com lucidez. Estou cuidando de vosso futuro, também!"

"Agora quereis vos colocar como protetora, para não parecerdes tão má quanto sois?"

Morgana já não estava tão segura de haver feito o certo. Por um átimo de segundo, o arrependimento. A constatação da perda da estima de Viviane, irrevogavelmente.

"Sinto muitíssimo, Viviane. Tinha que ser assim. Era preciso."

Dizendo isso, Morgana avançou pelo bosque e desapareceu entre as árvores, deixando Viviane sozinha na floresta. Ela ajoelhou-se no chão coberto de folhas, diante de onde, minutos antes, uma cortina de névoa havia engolido seu amado. "Perdoai-me, meu amor," falou, como quem fala a alguém do outro lado de uma porta. Por longos minutos, encarou, imóvel, concentrada, o local onde Merlin sumira, como se ele ainda estivesse ali, apenas oculto por uma estranha cortina de ar e, com algum esforço, pudesse obter ao menos um vislumbre de sua silhueta. "Perdoai-me," prosseguiu em seu monólogo, "foi tudo culpa minha, do meu egoísmo, de querer sempre ter tudo. Ficar convosco, preservar meus pais, manter minha reputação. Se fosse mais generosa, teria preferido abrir mão de vosso amor, mas jamais consideraria uma proposta de vos trancafiar apenas para vos manter comigo." Mas ele não estava do outro lado de uma cortina, de onde pudesse ouvi-la. Não a ouviria, nem ela a ele, nunca mais. Lembrou-se do sonho que Merlin lhe contara, da lenda de Órion e Diana. Tal como Órion estava nos céus, também Merlin agora pertencia a outro mundo, outra dimensão. Mas, ao contrário de Diana, ela sequer poderia contemplá-lo durante as noites. Nada restara. Perdera o amado. Perdera a amiga, cuja traição a magoara profundamente. Perdera a honra e a estima dos pais.

Desabou no chão. Mirou o capim, as raízes grossas das árvores. Lágrimas escorriam de seus olhos e pingavam nas folhas caídas, mas ela sequer notara que chorava. Percebeu um brilho na relva. Algo refletia a luz do sol. Limpou a vista com as costas da mão e esticou o braço direito, alcançando o objeto. Um medalhão, o medalhão de Merlin. Simplesmente caíra ali? Improvável. Viviane preferia acreditar que, quando ele notou que ela não conseguiria alcançá-lo, desfez-se do objeto, esperando que ela o encontrasse, para que algo dele permanecesse com ela. O medalhão, pequeno, deve ter podido atravessar o portal quando nenhum dos dois mais poderia. Há menos de uma hora, aquele medalhão estava contra a pele do peito do amado, Viviane pensou, depositando um beijo no metal frio.

Ficou de pé, caminhou até o rio que corria a poucas milhas de onde estava. Não precisava recorrer a truques, como abraçar-se a uma pedra. Não sabia boiar, nem nadar. Apenas mirou o horizonte e caminhou rio adentro. A água lambeu seus pés, seus tornozelos, suas pernas, seus joelhos. Ela olhava para a frente, só para a frente. Temia perder a coragem ao ver a água engolfando-a inteira. Sentia-a nas coxas, depois na cintura, no peito, no queixo. Na boca, invadida pelo sabor barrento. No nariz. O brilho da água iluminada pelo sol estava bem na altura de seus olhos e a encandeava, mas logo esses também submergiram. Sua testa. Sua cabeça. Quando a água invadiu seus pulmões, sentiu um forte queimor. Mas a languidez torporosa que a tomou, e a sensação de leveza, como se não tivesse mais um corpo, era agradável e tranquilizadora. Fechou os olhos. Pensou em Merlin uma última vez, segurando com força o medalhão.


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