Trinta - Veritas Vos Liberabit

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Quando o cheiro de mofo fez seu nariz coçar, Melissa percebeu que retornou à sala de arquivos, no presente, no St. Marcus Institute. Por um instante, o mundo parou. Um zumbido esquisito tomou conta de seus ouvidos, sua cabeça girou, seu estômago embrulhou. Os pulmões puxaram com toda a força o oxigênio que lhe pareceu faltar. A sensação de que estava embaixo de uma ducha de água gelada passou no momento seguinte, e Melissa ainda pôde ter um vislumbre da imagem translúcida de Barber Paay, dos olhos esverdeados que sofriam, antes que desvanecesse no ar.

A doutora piscou variadas vezes atordoada. Seu corpo estava mole e ela tinha dificuldades para se equilibrar. Apoiou-se em um dos arquivos de metal velho, fechando os olhos com força. Era difícil raciocinar com coerência ainda. Era difícil assimilar a barbaridade a que assistira de camarote, o evento sobrenatural, o assinato brutal. E mais difícil ainda enfrentar o fato de que a impotência imposta por três anos de distância a obrigara a ficar lá, parada, sem fazer nada, enquanto Barber Paay via a vida escapar por entre seus dedos.

Uma pequena e teimosa lágrima escorreu lentamente pelo canto do olho de Melissa. Seu rastro quente e molhado a fez estremecer e abraçar o próprio corpo, em uma reação de defesa. Apagar aquela cena seria difícil. Sob suas pálpebras fechadas, a imagem da Barber Paay esfaqueada e ensanguentada estava tatuada. Era o tipo de coisa que viria sorrateiramente atormentá-la todos os dias, invadir seus pesadelos, perturbar seus pensamentos.

Havia, entretanto, um alento em meio ao mar de desespero que a morte daquela garota inocente representou. Algo digno de deixar uma chama quente de esperança queimar em seu peito e acalentar seus medos. Melissa, afinal, não dispunha de tempo livre para lamentar e choramingar. Tudo porque finalmente a verdade sobre o assassinato de Barber Paay havia sido revelada. E Corey Sanders era inocente.

Corey Sanders era inocente.

Melissa deixou escapar um sorriso triste, mas ao mesmo tempo singelo, quando a constatação lógica, e naquele momento tão simples, instalou-se em seu cérebro. Livrou-se de uma carga de várias toneladas que nem sabia estar instalada em suas costas, não era seu fardo para carregar, mas ela o adotara sem dar-se conta disso. O resultado foi que se sentiu leve, finalmente leve, aliviada por não ter sido seduzida por um assassino, e um rio de lágrimas pediu passagem através de seus olhos. Sorria e chorava ao mesmo tempo, enquanto ainda se utilizava do velho arquivo para manter o corpo em pé. O desespero e a alegria se misturavam e confundiam seu organismo prejudicado.

Por óbvio, houve um tempo em que desconfiou seriamente de Corey Sanders. Achou que ele seria capaz de uma atrocidade como a que teve o desprazer de presenciar. E mesmo quando viu-se encantada demais por seus olhos azuis e por seu sorriso ladino mergulhado em malícia, Melissa teve suas dúvidas. No entanto, as mensagens do fantasma insistente de Barber Paay acenderam uma esperança em seu coração apaixonado. Um coração, a partir dali, livre e desimpedidamente apaixonado. Por um homem que não era um assassino.

Aquele sentimento de culpa por ter se deixado levar por um condenado foi desaparecendo aos poucos... Embora Corey Sanders ainda demonstrasse inquestionável desequilíbrio emocional, sua alma não era marcada por um pecado capital amaldiçoado. Não era difícil constatar que os três injustos anos que passou no St. Marcus Institute seriam responsáveis pelo domínio da insanidade. Viver naquele lugar sem enlouquecer era para poucos. Viver no helvete, diminuía a probabilidade de se manter nas perfeitas faculdades mentais para quase zero. Mas Melissa o ajudaria a se recuperar. Melissa o ajudaria a ter sua vida de volta.

Porque Melissa já não sabia mais como viver sem ele.

Então, quando foi capaz de ter absoluto domínio sobre os músculos de suas pernas, ordenando-os a se movimentarem, deixou o arquivo. Já não tinha mais medo. Até o simples ato de respirar era mais fácil. Seus músculos relaxaram de tal modo, que a sensação era a de que havia acabado de passar por uma libertadora sessão de massagem.

Psicose (Livro I)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora