Capítulo 5

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1.

Cinco fachos de luzes brancas cruzavam o vácuo, transpassavam as gotas de água e pousavam sobre os nossos corpos nus no meio do palco escuro. A plateia não conseguia ver todo o aparato elétrico e hidráulico escondidos pelas tapadeiras. Além dos refletores, haviam canos estrategicamente dispostos a fazer chover no palco do Somnium para aquela cena do chuveiro. A diferença é que chovia no palco inteiro e não em um ponto específico. Isso dava mobilidade para que eu e Roger pudéssemos dançar e performar por um espaço grande sem sair debaixo da água. No piso havia um tecido emborrachado como se fosse uma piscina para não danificar a estrutura do palco repleta de elevadores e dispositivos eletrônicos.

O meu subconsciente não disfarçava e ali no Somnium os espectadores assistiam o espetáculo cientes de que não seriam poupados de nudez, sexo ou vocabulário impróprio. A orquestra era o relógio que marcava o tempo dos acontecimentos durante a peça, tocando as músicas da minha vida. O vasto elenco era composto por todos que fizeram parte do meu convívio e foram relevantes em algum momento da minha trajetória. Não seguíamos um roteiro específico. Muita coisa era improvisada. Os planos estavam traçados, mas se seriam cumpridos era uma incógnita.

A luz esmaeceu, os pingos d'água cessaram e tudo ficou em repleta escuridão. Eu não conseguia pensar em absolutamente nada depois do que Roger me dissera. Eu sou gouine. Meu cérebro repetia. Eu desconfiava que ele talvez fosse muita areia para o meu caminhão, que algo podia estar errado. Entretanto, nem nos meus pensamentos mais insanos eu podia imaginar que eu ouviria da boca dele que ele fosse um gouine.

Naqueles dias a mídia não divulgava tanto as diversidades de gênero possíveis e nem a multiplicidade de papéis dentro dos relacionamentos hétero, bi e homossexuais. Talvez tudo sempre tenha existido e acontecido, mas não havia denominação como há nos dias de hoje. Não havia espaço para discutir sobre isso como há hoje.

Não fazia muito tempo que eu tinha ouvido falar sobre os G0ys. Esse é um neologismo criado para se referir a todos os cuecas que não se identificam como gays ou bissexuais. Contudo, não se identificam como héteros unicamente tampouco. Essa galera vive em um limbo além das classificações abstrusas. Eles se permitem se relacionar com pessoas do sexo oposto, mas não se privam de trocar carícias, beijos, abraços e intimidades com pessoas do mesmo sexo desde que não haja penetração. Quando mais novo eu chamava isso de amizade colorida.

A diferença entre um G0y e um Gouine é que esse último se identifica como gay. A palavra provém do francês "Gouinage" e remete a prática sexual lésbico, que consiste em atividades homoeróticas sem a necessidade da penetração. Nessa relação não existem desvantagens sexuais uma vez que os indivíduos podem explorar sua capacidade de proporcionar prazer mutuamente estudando o corpo do parceiro, tentando chegar ao orgasmo de uma forma "tântrica", mas sem suas técnicas. Apenas com o toque, a fricção dos corpos, masturbação e as vezes sexo oral.

Eu só conseguia enxergar aquilo como sexo incompleto já que na minha concepção de coito o ato terminava com penetração. Aquilo tudo que um gouine fazia eram as preliminares apenas. E para mim isso significava terminar o jogo sem ganhar o prêmio. É quando dá "velha" no jogo da velha. É quando dá "draw" no vídeo game. É você chegar no restaurante com fome, comer um pouco do aperitivo, sentir o cheiro do prato principal na sua frente, e ficar só lambendo os beiços.

A escuridão se dissipou quando uma imagem surgiu no enorme telão no fundo do palco. Era a imagem de um rapaz com os olhos abertos e vazios, com o olhar perdido. Era como se o rapaz olhasse diretamente nos olhos de cada espectador presente dentro daquele teatro naquela noite. Esse rapaz era eu. E eu estava com tesão, muito tesão e muito bêbado para ter ido até aquele lugar.

Enquanto a plateia assistia a cena no telão no fundo do palco do Somnium. Do outro lado, ao invés de eu olhar de volta para os observadores através da pequena tela quadrada da televisão que estava a minha frente, meu olhar na verdade estava perdido na fotografia das pirâmides do Egito em um panfleto de uma agência de viagens que eu segurava em uma das mãos.

100 Cuecas!Where stories live. Discover now