Interlúdio 2

130 5 1
                                    

Eu não sabia quanto tempo havia se passado. Quando finalmente consegui abrir os olhos a redoma de fogo já havia se extinguido. Nada obstante, minha face ainda queimava de frio, tensão, indignação e ódio. Meu coração batia descompassadamente e em um ritmo tão acelerado que eu conseguia senti-lo nas veias dos braços e pescoço.

Olhei para o céu em busca de respostas e de uma redenção que jamais veio. Minhas lágrimas ferventes tentaram inutilmente cicatrizar o meu espanto diante do cenário digno de filme de terror que eu estava vivendo. Não me lembro se houve ajuda, mas quando por fim me levantei e olhei para as minhas mãos, estavam banhadas de vida que esfriava e esvaía por entre meus dedos sem que eu pudesse fazer nada.

Embora estivesse fisicamente ainda na Rua Augusta, o que os meus olhos enxergavam era um cenário totalmente diferente. Eu me via sobre uma massa de rocha escarpada no formato de uma barbatana de tubarão no meio de um oceano de sangue. O céu esverdeado era uma pilhéria de mau gosto frente a esperança que eu já não tinha dentro de mim. Havia aquele cheiro funesto de ferro no ar e se intensificava a cada vez que as ondas se chocavam contra o rochedo tentando me derrubar do pináculo.

Não havia nada em qualquer direção que eu olhasse. Entre o imenso céu nebuloso e o mar de plasma só havia eu e o sopro forte do arrependimento tentando me tirar do alto de minhas faculdades mentais.

Como eu tinha ido parar ali? Aquela não podia ser a minha vida. As coisas não podiam simplesmente acabar daquele jeito.

O susto e a aflição ainda faziam minhas costas doerem. Era uma pontada aguda como se alguma força oculta estivesse me alanhando impiedosamente.

Um ribombo ameaçador repercutiu sobre as nuvens ondulando o firmamento em direção ao horizonte infinito. Sem demora o céu se desfez em uma tempestade de sangue, pintou minha roupa de escarlate, se infiltrou em minhas partes íntimas, escorreu pelas minhas pernas, encharcou meu par de tênis, penetrou nas minhas meias a ponto de eu sentir o líquido viscoso entre os dedos dos meus pés, tingiu meus cabelos e minha pele de vermelho.

Fechei os punhos e do alto da rocha, no meio daquele banho de sangue, gritei.

— Ele está em estado de choque. — Ouvi uma voz dizendo atrás de mim.

Ainda trôpego, eu estava gritando de desespero e olhando para as minhas mãos sujas de sangue quando alguém me cobriu com uma manta térmica aluminizada e me encaminhou para uma das quatro ambulâncias que fecharam a rua Augusta em conjunto com várias viaturas da polícia militar. Por um momento pareceu que eu havia sido jogado em um daqueles cenários de final de filme do Bruce Willis, quando o herói salva a mocinha e mata o vilão. Entretanto, a minha realidade era outra. Além de não haver mocinhas, como identificar o vilão se esse permeia o subconsciente de uma sociedade kafkiana, refém de uma política injusta e corruptível, desenvolvida sob valores machistas e disfuncionais que sequer sabe distinguir a diferença entre opinião e ofensa?

Eu ainda não estava acreditando que aquela era a minha realidade.

Isso tem que ser um pesadelo. Tem que ser! Eu quero acordar e saber que tudo está bem. Queria acordar nos Estados Unidos e continuar vivendo minha vida. Eu não deveria ter voltado ao Brasil.

Enquanto meus pensamentos insistiam em rejeitar tudo que eu tinha visto, bombeiros me colocaram numa maca e reviraram meu corpo em busca de ferimentos. Quando por fim não encontraram nada, tentaram puxar papo comigo, mas eu não conseguia falar. Uma aglomeração de pessoas curiosas começou a se formar. Olhares curiosos esmerilhavam a cena do crime. Crime ouvi alguém dizer. Crime. Eis uma palavra pesada e desagradável que nunca pensei que faria parte da minha vida novamente. E lá estava eu novamente me achando responsável pelo acontecido.

100 Cuecas!Where stories live. Discover now