Capítulo 23

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1.

Dani bateu com a mão na mesa de madeira, indignada.

— Você não está contando a história direito, Fábio. Está atropelando os fatos. — Ela disse.

— Como assim? — Respondi confuso e mastigando uma sobrecoxa de frango frita e bem temperada.

A nossa cantoria tinha sido um sucesso e houve pedidos para que cantássemos mais. Porém, voltamos para a mesa e começamos a relembrar as histórias e a reviver sentimentos desnecessários.

— Você não reencontrou o Pablo na lavanderia. Você o viu pela primeira vez depois que ele te achou perdido em Long Island naquele dia que você abriu a porta do quarto e pegou a gente na cama.

— Sério isso, gente? Caralho, bicho! Eu dava tudo para ver sua cara nesse dia, Mané. — Daniel disse dando risada, cobrindo a boca com uma mão.

— Cale a boca, Daniel. Foi horrível. Foi chocante. — Falei ainda mastigando o frango e limpando os dedos engordurados em um guardanapo. — Eu não estava esperando. Para mim, até então, Dani era lésbica.

— Mas eu sou lésbica. — Dani falou com um sorriso irônico colocando a mão delicada no centro do peito e fechando os olhos em uma interpretação tão forçada que mais parecia aquelas atrizes amadoras de teatro infantil. — Mas isso não impede de eu querer curtir outras coisas quando me dá vontade. Não é mesmo? Por quê eu tenho que vestir um uniforme e obedecer um padrão? Só porque eu namoro com a Érica?

— Você sempre foi um ponto de referência para mim. Você era como se fosse... como se fosse...

— O seu mestre Yoda. — Daniel concluiu.

— Exato. Yoda. Só que alta, loira e mais bonita.

— Desculpe se você projetou essa imagem de uma garota perfeita no seu subconsciente, Fábio. Eu não sou totalmente responsável pela imagem que você construiu de mim com base na nossa convivência e nas coisas que sabe sobre mim. Há sempre muito mais sobre uma pessoa do que palavras são capazes de expressar. Somos cores. Iguais as cores, quero dizer. Somos gradientes e não uma cor chapada. No que você enxerga em mim como azul, para o Daniel pode ser roxo. As cores que eu mostro para vocês não são as mesmas que eu mostro para a Érica. Somos diferentes em situações diferentes, com pessoas diferentes.

— Você quer dizer falsa? — Arrisquei, já esperando uma má resposta.

— Quero dizer diferente. Tem um lado da sua personalidade que eu conheço, mas sua mãe não. Tem um lado de sua intimidade que o Daniel conhece e eu não. E assim por diante. O todo se forma através das percepções que os outros têm de nós. Em si, não somos nada. Por isso o corpo morre, mas atitudes e obras prevalecem além do ser, para sempre. O que vale é o fazer e não o ser. "Ser", você pode ser quem você quiser ser. O difícil é o "fazer". Porque isso implica em escolhas. E as escolhas sempre lhe trarão felicidade na mesma proporção que tristeza. E poucos estão dispostos a enfrentar isso.

Dei de ombros e falei:

— Eu nunca vou entender as suas filosofias.

— Não tem problema nenhum nisso. Só não me julgue por não ter as suas.

Dani era uma dessas pessoas que não pensava se você ia ou não gostar de ouvir o que ela tinha para falar, simplesmente falava. No começo, ter uma amiga com essas características era o que eu mais admirava. Éramos francos. Entretanto, conviver com alguém assim é mais complicado do que se imagina. Levar na cara verdades que você não quer ouvir e a todo momento não é legal e além disso, ter que relevar coisas em prol da boa convivência é muito desafiador. Algumas vezes eu rebatia, principalmente quando eu achava que estava com a razão. Porém, isso se estendia para debates morosos e inconclusivos. Por isso, na maioria das vezes eu fazia o mea-culpa e pedia desculpas para não jogar a mesa do jantar para fora da janela do apartamento com ela junto.

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