Capítulo 27

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1.

"No amor não existe receio; antes, o perfeito amor lança fora todo medo. Ora, o medo pressupõe punição, e aquele que teme não está aperfeiçoado no amor."

(João 4:18)


Minha mãe sempre foi uma pessoa religiosa. Quando era adolescente e até depois de se casar frequentava uma igreja evangélica e acatava não somente com que a bíblia dizia, mas também com o que pastor postulava incessantemente durante os cultos. Meus pais se conheceram quando trabalharam juntos em uma fábrica de alumínio. Meu pai nunca foi tão adepto ao alheamento religioso quanto minha mãe. Ele preferia se encontrar com amigos para uma cerveja em uma birosca enquanto minha mãe religiosamente marcava ponto dentro de alguma assembleia crente. Sendo assim, foi inevitável minha imersão mesmo que muito superficialmente no mundo religioso. Por insistência parei de frequentar os cultos, por medo de consequências divinais parei de orar, por assentir mais com que meus professores explicavam do que com o que os pastores gritavam passei a me questionar e a buscar respostas dentro do que eu considerava mais plausível. Entretanto, não nego o poder que a fé exerce nas pessoas e na força que ela emana de si só. Talvez meu problema seja mais com as religiões do que com o Deus que todas elas buscam. Sempre ouvi trechos da bíblia lidos pela minha mãe. E um desses trechos me veio a cabeça quando parei em frente ao balcão do FAG bar depois de ter ido ao banheiro esvaziar a bexiga.

Dois rapazes, um aparentemente da mesma idade que eu, trabalhavam como barman. A rodada de cerveja que Joshua havia trazido já tinha acabado e eu queria beber mais. Enquanto um deles preparava o drink que eu pedi, o outro entregou para uma garota que estava ao meu lado a bebida que ela havia pedido. Ela agradeceu mordendo o canudo e abrindo um sorrindo maroto antes de dizer cantando "thanks, love ya". O rapaz da minha idade sorriu e piscou para ela e deu para ouvir, depois que ela já tinha se distanciado, ele dizendo para o colega que um dia desses pegava ela de jeito. O outro bem mais novo chacoalhava uma coqueteleira quando respondeu que a garota tinha namorado e foi surpreendido por um tapa na bunda, que tentou desviar, e com o colega dizendo que não era ciumento. Enquanto eles continuavam o seu trabalho de atender os clientes e tecer comentários sobre as garotas que frequentavam o bar, minha atenção se ateve a um quadro preso na parede. Nele havia uma lista de aniversariantes do mês. Em Inglês normalmente o mês vem antes do dia e em um dos nomes ao invés da característica barra dividindo mês e dia, havia dois pontos. E eu li:

Lovegood, John 4:18

Obviamente aquilo significava que o funcionário John Lovegood aniversariava em dezoito de abril. Porém, para mim parecia um registro bíblico. E aquela parte em específico, João 4:18, eu sabia de cor. Nesse mesmo momento a voz de John Mellencamp cantando seu sucesso Hurt so good começou a tocar pelo bar. Foi impossível não lembrar de Roger. Essa era a música que tocava no rádio do caminhão que nós pegamos carona, deitados sobre o baú, até o Pico do Jaraguá. Foi durante essa aventura que ouvi ele dizendo que me amava pela primeira vez, com os olhos emocionados. Também não teve como não lembrar do dia do flagra, de nós dois nas escadas de emergência do meu prédio e ele me dizendo: "Sabe quantas vezes eu ouvi "eu te amo" durante esse tempo todo juntos? Nunca!" E agora analisando bem, ele tinha razão. Eu nunca consegui falar "eu te amo" não só para ele, mas para ninguém, exceto retoricamente para os meus pais antes de sair de casa. Será possível que eu nunca tinha conseguido de fato amar alguém?

Será que fui egoísta (também) com relação a isso? Será que nunca estive disposto a renunciar para ganhar? Ou será que em comparação, a perda no delimitar um sentimento tão sublime a um alguém só sempre fora maior que os ganhos? Na verdade, um livro que li alguns anos mais tarde, Discurso da Servidão Voluntária de autoria de um jovem humanista e filósofo francês chamado Étienne de La Boétie, me ajudou a clarificar minhas ideias. No livro ele sugere que um ser tirano só exerce sua dominação frente a um servilismo voluntário de seus súditos, pois esses permanecem sob o seu jugo à conta de uma aparente segurança que lhes são proporcionada. E mais do que isso, as pessoas preferem a servidão à libertação, pois essa última é muito mais laboriosa de se administrar. Eu, por exemplo, quando criança, não precisava me preocupar com o que iria ter de almoço. Minha mãe decidia tudo, fazia tudo. Ela ditava as regras e tudo que eu tinha que fazer era obedecer. E sentia prazer quando conseguia fazer tudo que me era demandado. Hoje quando vou a um restaurante e olho o cardápio, me deparo com tantas opções que acabo pedindo o mesmo de sempre com o pretexto de não querer errar. Ser livre dá trabalho. Quando namorei Roger, me permiti ser servil talvez por status de querer mostrar que eu estava namorando um cara cobiçado como o Roger ou talvez por sentir essa segurança de que nunca íamos nos separar, afinal ele era louco por mim já que queria mandar em mim. Paga-se um preço altíssimo pela liberdade e alguns simplesmente abrem mão do seu direito de serem livres e passam anos na servidão, pois aquilo lhes protege e exerce um certo fascínio acerca das representações (já que há as vezes um certo fetiche pelo dominador) e libertam o medo do poder, o qual se estabelece mais pelo afeto do que pela força. Se para La Boétie para se destituir o tirano de seu poder ficcional, basta deixar de servi-lo, para mim, eu diria que as pessoas só fazem com a gente aquilo que permitimos. E há várias razões por permitirmos.

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