Interlúdio 1

267 27 40
                                    

1.

Em meio ao nada fez-se a luz.

O jato flamejante rompeu a escuridão ao som sibilante de uma nuvem de fogo que logo se transformou em um ronco, um chiado poderoso. Dois arcos se formaram no rastro dos movimentos das asas chamejantes do anjo mascarado se abrindo. Sob sua máscara escorriam filetes rubros, feito arranhões em seu pescoço. Assim como eu já tinha visto anteriormente.

O ser alado caminhou nu com sombras cobrindo-lhe as partes íntimas e o chão por onde passava.

Ele veio em linha reta na minha direção com as asas abertas, carregando o alarido de terror nas gotas de fogo que pingavam no chão. A cada passo a superfície rachava sob a sola de seus pés descalços. Eu conseguia ouvir as vozes desesperadas por trás do chiado das chamas, dos baques de seus passos e das rachaduras que elas causavam. Ele estava trazendo a desgraça consigo ou servindo de bloqueio entre eu e ela? Eu não sabia dizer. Mas as vozes eram reais, os gritos eram reais, o horror era real.

O horror ainda é real.

Abri os olhos para afugentar a imagem do anjo caminhando na minha direção com os braços abertos, pronto para me dar o abraço de condolências. Porém, talvez fosse melhor ficar de olhos fechados. Abri-los significava ter que encarar a realidade. O que era pior? O que seria menos doloroso?

Eu estava sentado em um corredor estreito do 4 º Distrito Policial que ficava na rua Marquês de Paranaguá no bairro da Consolação em São Paulo. O cheiro de sangue ainda fresco agora se misturava com o do álcool perfumado que exalava do chão e aquilo já estava me causando enjoo.

Meu olhar estava perdido. Tentei, mas não consegui esquecer todos os acontecimentos que me levaram até ali. Eu senti frio. Minha roupa estava ensopada de sangue. Eu estava imundo por dentro e por fora. Eu senti raiva. Um ódio inominável junto com um sentimento de impotência e arrependimento. Olhei para as minhas mãos sujas também e tentei esquecer de tudo. No meu pulso um par de algemas me prendiam ainda mais a culpa que sentia.

— Vamos? — Chamou a policial que passou na minha frente com papéis nas mãos e com o salto da bota se sobressaindo ao zumbido monótono do reator das luzes fluorescentes esverdeadas do teto.

Culpa. Ela é a grande responsável por sofrimentos psicológicos, se esconde atrás de nossas tristezas e frustrações, de nossas insatisfações na vida, de nosso tédio e angústias. Esse sentimento é um um apego ao passado; é uma tristeza por ter cometido algum erro que não deveria. No fundo, o sentimento de culpa é o peso de carregar em nossa mente estas palavras: "não deveria". A base da grande tortura interna que a culpa causa é a frustração pela distância ínfima entre o que não fomos ou fizemos e a imagem de como nós deveríamos ter sido ou ter tido a chance de fazer algo diferente. É a tristeza por não sermos perfeitos, por não sermos infalíveis; um profundo sentimento de total impotência.

"Todo o homem é culpado do bem que não fez." — um pensador esclareceu um dia. "Poderia ter sido diferente? Tinha que que ter sido diferente! Por quê as coisas tinham que ser assim?" — Eram as perguntas que martelavam em minha mente incessantemente.

Por quê? Por quê? Por quê eu sempre estava tentando entender os acertos de conta do destino, mesmo sabendo que aquilo não mudaria em nada o curso dos acontecimentos? A merda estava feita.

A policial andou a frente e eu a segui, escoltado por outros dois colegas dela. Da porta de entrada da delegacia surgiu um rosto familiar, mas a princípio nem o rosto dela eu consegui distinguir de tão atordoado que eu estava. Só depois que gritou meu nome foi que eu ergui o olhar até então absorto em lembranças e resoluções utópicas. Entretanto, não consegui ter nenhuma reação, exceto espanto por ter atendido meu pedido tão rapidamente de vir até ali. Dani tentou me abraçar, mas foi contida pelos policiais atrás de mim:

— Vai dar tudo certo, Fábio! Eu já falei com seus pais! Eles estão vindo com um um advogado! Não diga nada que te comprometa, Fábio! Fábio! — Gritou Dani lutando nos braços de um dos policiais.

— Não deveríamos ter voltado pro Brasil, Dani! Não deveríamos ter voltado, porra! — Falei alto, com os olhos voltando a verter lágrimas enquanto era forçado a seguir em frente.

No final do corredor, entrei em uma sala que mais parecia um consultório médico. Havia uma mesa cheia de papéis timbrados e prontuários, além de um armário de metal no canto da parede perto da porta de um banheiro escuro. A frente da mesa haviam duas cadeiras. Atrás dela um homem de quarenta e poucos anos com um olhar sisudo e o rosto repleto de marcas de acne me fitou de cima abaixo.

— Tire isso das mãos dele. — O Delegado Nascimento mandou e um dos policiais tirou as algemas das minhas mãos prontamente. — Sente-se, filho. Como se chama?

Que vexame. Eu, logo eu, algemado em uma delegacia tendo que prestar esclarecimentos. Minha avó ia adorar ver isso.

— Fábio. — Respondi com a voz rouca após um pigarro. Minha garganta ainda estava dolorida.

— Nome completo, filho. — Nascimento disse com certa impaciência na voz enquanto recebia das mãos da policial um relatório do que havia acontecido comigo.

— Fábio Sanchez Linderoff.

— Idade?

— Trinta e um.

Enquanto eu respondia ele lia sobre a ocorrência e parava algumas vezes para me observar. Talvez tentando criar uma imagem para o relato que tinha em mãos, tentando me associar aos fatos.

— Podem ir. — O delegado falou e os dois policiais obedeceram.

Depois que a porta da sala foi fechada, o delegado colocou os papéis sobre a mesa, relaxou as costas no encosto da cadeira e observou minha roupa empapada de sangue.

— Está ferido?

— Eu? Não. — Disse baixando a cabeça.

"Defina ferido". — Pensei comigo.

— Está mais calmo? — Ele perguntou cruzando os dedos e debruçando-se sobre os papéis na mesa. Ergui o olhar e me mantive calado. Ele pegou novamente o meu relatório, leu e falou apontando para os papeis: — Ande, filho. Me conte essa história aqui direito.

A voz do delegado Nascimento não passou de um eco. Meu olhar ainda estava perdido quando a luz do discernimento se apagou.

Me levantei da cadeira no meio da escuridão e me dei conta de que eu não estava mais na delegacia. Não havia mais delegado, mesa, cadeira, arquivo, nada. Após ouvir um som parecido com "clank", uma luz interrogatória me iluminou no meio do palco da minha vida e antecedeu uma campainha que me fez imergir profundamente em meu passado.

Viajei para longe, muito longe da delegacia, muito além do tempo e espaço. Fui parar no grande teatro Somnium. Tudo havia desaparecido, inclusive minhas roupas. Eu estava sete anos mais jovem e vestia apenas uma sunga. Virei de costas para as cortinas vermelhas ainda fechadas. Era possível ouvir o burburinho da plateia atrás do pano pesado. O espetáculo musical tragicômico da minha vida ainda não tinha acabado.

O show ia continuar.

100 Cuecas!Onde as histórias ganham vida. Descobre agora