A Segunda Carta

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Campos Verde, fevereiro de 2019

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Campos Verde, fevereiro de 2019

Querido Moabe,

Vitória!

Ontem fui dormir mais de três da manhã, mas arrumei quase tudo no meu quarto. Ficou faltando apenas o mural, porém, tô achando que vou abandonar a ideia de mural, apenas achando, pois é difícil desistir de algo que nos acompanha desde sempre.

Ajudei seo Jeremias com a horta hoje de manhã e ele falou sobre o quanto estou diferente e isso não tem nada a ver com meus cabelos recém cortados acima dos ombros e sim com quem  sou agora e quem eu era cinco anos atrás -- a última vez que havia passado algum tempo no sítio. Sendo assim, achei justo te falar um pouco sobre mim.

Tenho muito orgulho de ser descendente de uma escrava - mesmo tendo a pele quase branca. Sou a mais nova de cinco filhos (Clara, Davi, Marcos e Tiago), formada em design gráfico, gosto de coisas coloridas, cachorros, toco violão e teclado (pelo menos acho que sei, tem algum tempo que não toco). Caramba! É muito difícil falar sobre nós mesmos.

Eu tenho falado que me mudei para uma casa nova, mas na realidade é uma casa velha. É a casa onde cresci e a deixamos quando meus pais começaram a fazer missões evangélicas. Tá aí, mais uma coisa sobre mim, sou cristã, evangélica mais precisamente.

Eu tinha nove anos na época da primeira missão conjunta dos meus pais -- eles sempre fizeram missões, mas separadamente, até o dia que Deus os mandou juntos para o Amazonas. Passamos oito meses em uma comunidade ribeirinha, eu e Babel, a filha de outra missionária, éramos as únicas crianças não indígenas e foi uma experiência incrível! Foi também quando meus pais “deram” nossa casa para seo Jeremias e dona Joana, um casal da nossa igreja que eles conhecem a quase trinta anos e não tinham onde morar na época. Eles ficaram responsáveis pelas despesas e manutenção do nosso sítio, poderiam plantar e fazer o que quisessem na terra, em troca meus pais não cobravam aluguel e nem nada. Depois do Amazonas fomos para Roraima, Mato Grosso, Bahia e Pernambuco e então voltamos para Campos Verde, ficamos dois meses no sítio morando com nossos amigos, eles ocuparam o antigo quarto da Clara, o maior quarto da casa, mas no térreo… A primeira semana foi esquisita, mas depois ficou tudo bem, até senti saudades deles quando fomos para a Etiópia, nossa primeira missão internacional. E foi por isso que não pedimos a casa de volta, pois desde então meus pais vivem para a obra de Deus e vão aonde Ele os manda.

Na Etiópia, eu era a única criança do nosso grupo e aconteceu de ser a primeira vez que não gostei de uma Missão; teve relação direta com o fato de que não conseguia aprender o idioma deles e quase ninguém falava inglês além de Yelaren, o líder comunitário que nos recebeu e instalou, um bom e atencioso homem, porém, eu queria falar com as crianças e não só com adultos. Foram sete meses difíceis, Moabe, fiquei muito aliviada quando finalmente voltamos para o Brasil, contudo, meu alívio foi embora uma semana depois. Meus pais seriam mandados a outra missão dali quarenta dias, Argentina, pelo menos eu falava espanhol e seria mais light, apenas oito semanas. De lá fomos pra Turquia, Espanha, Portugal, Itália, Alemanha, Holanda, Canadá, México, Honduras, Haiti, Venezuela e Peru quando enfim voltamos pro Brasil, onde fomos para uma cidadezinha lá no norte de Minas e fundamos a primeira igreja pentecostal de lá, nisso eu já tinha dezesseis anos e tomei uma decisão, queria estudar em uma escola, pelo menos no último ano, meus pais consultaram o Senhor e Ele consentiu, foi assim que morei os últimos seis anos com minha tia Madalena em Campinas até que, dez dias atrás, voltei para minha casa.

Resolvi voltar porque o marido da tia Madá me causa arrepios e não são arrepios bons! Tia Madá ficou viúva quando Bel tinha doze anos (hoje ela tem vinte) e há dois anos conheceu o Saulo, seis meses atrás eles se casaram, fiquei feliz pela tia Madá até ter que conviver com Saulo, ele é grosseiro, autoritário, machista e hipócrita! E a minha tia não vê nada disso, para ela Saulo apenas tem gênio forte. Eu acho babaquice usar o seu temperamento forte como desculpa para ser escroto, mas como diz aquele ditado os incomodados que se mudem, foi o que fiz.

Dona Joana e seo Jeremias estão ainda mais velhos do que eu me lembrava e são um exemplo para mim, são como os avós que não tenho mais e morar aqui tem sido uma experiência revigorante, algo que eu precisava depois do último ano. Só não gosto muito da insistência deles para que eu vá na igreja, estou afastada dos caminhos do Senhor há três anos e vou voltar, só que no meu tempo e gostaria de ter isso respeitado, porém, meus avós postiços encontram dificuldade em compreender isso, não apenas eles, toda a minha família. Neste quesito, minha tia Tamar, meu primo Jacó, minha prima Ruth e eu somos as ovelhas negras da família, pois todos os outros são evangélicos praticantes -- nos dividimos em três ministérios, mas, sabemos que placa de igreja não salva ninguém, o importante é estarem e serem igreja. Você não concorda, Moabe?

A sua família é cristã? Você continua caminhando na presença do Senhor ou assim como eu esfriou? Se tiver esfriado espero que o Espírito Santo restaure você! E lhe dê forças para voltar a caminhar, eu quero voltar, mas… Não sei explicar. Eu ainda não consigo. Foi um dos motivos que me fizeram escolher voltar para minha casa, talvez afastada das distrações seculares eu consiga me concentrar e encontrar o que perdi para prosseguir  minha caminhada seguinte o querer  de Deus.

Dona Joana está me chamando, vou ver no que posso ajudar.

Com amor,
Laura

[CONCLUÍDO] CARTAS À MOABE - O Encontro de Uma Mulher Com Seu DeusWhere stories live. Discover now