A Terceira Carta

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Campos Verde, fevereiro de 2019

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Campos Verde, fevereiro de 2019

Querido Moabe,

Eu tenho um cachorro!

Ele é muito sapeca e se chama Mozart, não, não fui que escolhi o nome. Eu nem mesmo gosto de música erudita; ele já veio com o nome e com a pata machucada, vou te contar como o adotei.

Ontem eu acordei muito cedo e não consegui mais voltar a dormir. Muito cedo mesmo, tanto que ainda estava escuro e dona Joana dormia. Depois de uns vinte minutos decidi levantar, lavei o rosto, prendi o cabelo e desci com meu notebook para a cozinha, porque meu quarto é o ÚNICO cômodo da casa que não pega o Wi-Fi, até pensei em ficar em outro quarto, mas eu gosto do meu e achei isso ótimo, porque me impede de ficar trabalhando até muito tarde, já que onze horas meus avós se deitam e eu me sinto mal por ficar zanzando pela casa uma vez que eles dormem no térreo e tem o sono absurdamente leve.

Voltando.

Pé ante pé fui para a cozinha (o cômodo mais distante do quarto deles) e depois de meia hora progredindo quase nada no visual do game resolvi fazer uma caminhada; neste meio tempo dona Joana já tinha levantado e meio que me obrigou a levar uma cesta de comida. Sim, uma cesta, sim, pessoas do interior tem cestas para carregar comida no melhor estilo piquenique.

Você sabe que Campos Verde mesmo sendo uma cidade com mais de meio milhão de habitantes ainda tem muita vida rural, tendo a agricultura como chave da nossa economia? Digo nossa porque mesmo tendo já morado em muitos lugares Campos Verde é a minha cidade e sempre será!

Voltando a Mozart. Como eu já disse nossa casa é um sítio  afastado do centro, é um casarão datado da época da escravidão e é herança de família - outra hora te conto sobre, tenho muito orgulho dessa parte da minha família, somos descentes de escravos que lutaram pela abolição… Quando eu era pequena nossos vizinhos mais próximo eram os Monteiro, que moravam em outro sítio há mais de três quilômetros de distância, aos fins de semana Clara, Davi, Marcos, Tito e eu caminhávamos até lá para brincar com Mara e Dara, as filhas gêmeas dos Monteiro e Abner, o primo delas que era doido pela Clara. Meu Deus, eu perdi o foco de novo! Enfim, os Monteiro venderam o sítio deles há alguns anos, os compradores tentaram adquirir o nosso também, mas meus pais sempre foram irredutíveis quanto a isso, não vendemos, é a nossa herança. Há dois anos seo Jeremias e dona Joana me contaram que construíram um condomínio nas terras dos Monteiro e hoje foi nessa direção que eu caminhei.

Menos de dois quilômetros depois vi o muro.

Deve ter uns cinco metros de altura e é horrível. Fiquei muito indignada,  principalmente por ser cinza, eu gosto de todas as cores, menos de cinza, cinza é muito xoxo e apático, mas minha verdadeira indignação foi porque eles arrancaram um tanto absurdo de árvores e bloquearam o caminho até o rio, que era meu destino. Dei uma volta enorme com o coração apertado de que tivessem roubado o nosso rio também, porém, graças a Deus não roubaram, maaaas, o que anos atrás era um rio hoje é só um riachinho que dá pra atravessar andando. Meu coração partiu. Queria seguir o curso d'água, pois doze quilômetros ao norte é a nascente, precisava confirmar se pelo menos a nascente continuava viva, contudo, antes de andar duzentos metros ouvi um gasnido e outro e outro. Não pensei duas vezes corri na direção, no percurso machuquei minha perna em uma árvore caída, mas não me importei, o cachorrinho poderia estar morrendo, por sorte ele não estava, aparentemente era apenas uma pata quebrada, como havia conseguido aquilo era um mistério.  O peguei no colo com cuidado e avaliei sua pata, resolvi que precisava de um veterinário para um diagnóstico verdadeiro.

Eu estava caminhando há uns dez minutos na direção da aberração de pedra quando ouvi uma voz feminina chamando por Mozart, achei bizarro, mas o filhote a reconheceu e virou a cabeça na direção e latiu fraquinho.

Paralisei.

-- Mozart! -- Gritou novamente já no meu campo de visão, era uma mulher mais ou menos da minha idade, branca como leite, dos cabelos pintados de azul e usando um biquíni de bolinhas verde e um shorts jeans tão curto que mais parecia uma calcinha, quando me viu segurando o cachorro caminhou na minha direção com o olhar furioso -- o que você fez com meu cachorro?

-- Eu não fiz nada! -- me defendi ainda segurando Mozart que ganiu ainda mais. -- Ele precisa de um veterinário, acho que quebrou a pata -- expliquei indicando a patinha, ela franziu o cenho e destravou o celular.

-- Não acredito que você vai me fazer gastar dinheiro, Mozart. -- Não gostei dela. Alguém que pensava mais em dinheiro do que na saúde de um cachorrinho não poderia ser uma boa pessoa.

-- Não acredito que você deixou ele se machucar -- rebati no mesmo tom. Ela me avaliou de cima a baixo e deu um sorriso condescendente. A odiei profundamente. Eu odeio sorrisos condescendentes.

-- Ele fugiu porque quis. Quer me dar ele?!

-- Meu avô é veterinário…

-- É? Ele mora no condomínio?

-- Não, moramos no sítio…

-- Ah, você é neta dos feirantes…

-- Sim, sou neta do feirante, que por sinal também é um veterinário competente.

A partir daí, Moabe, continuamos trocando farpas até estarmos em frente aquela coisa horrenda que era o muro cinza, ela me convenceu a ir de carro até minha casa, era mais rápido, aceitei porque Mozart não parava de chorar. Seo Jeremias me aliviou, Mozart não estava com a pata quebrada, apenas luxada, repouso e um remédio para dor eram suficientes. A dona dele, Mical, reclamou e não parou de brigar com o cachorro, foi quando soltou a maior pérola.

-- Mozart, juro que se você não fosse bonitinho te abandona na beira da estrada.

Supostamente foi uma brincadeira, mas meu avô e eu dissemos o quanto era repulsivo enfatizando que além de tudo era crime, foi quando ela deixou escapar que estava doando Mozart e quão difícil estava encontrar um lar, pois ninguém queria um vira-lata preto, mesmo que fosse mestiço por ser cria de um Fila, ele continuava com cara de vira-lata. Imediatamente, sem nem pensar, eu disse que queria ele e foi assim que Mozart ficou na minha casa. Hoje fui a cidade comprar uma caminha para ele, porque enquanto ele estiver com a pata machucada dorme no meu quarto e depois, quintal. Infelizmente meus avós foram firmes quanto a isso; nada de criar cachorro dentro de casa, só conseguimos convencer eles   por causa da pata e porque tanto Mozart quanto eu fizemos cara de cachorro que caiu da mudança e então acabaram cedendo, enquanto ele estiver machucado pode dormir e apenas dormir comigo.

Mozart é tão lindo e arteiro, Moabe!

E foi assim que ele virou meu filhote! Fim! A pata dele está melhor, por sinal.

Essa carta já virou um testamento! E minha mão está doendo!

Com amor,
Laura.


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Oie,

Que bom que vc está aqui.

Tenho me controlado para não deixar notinhas de rodapé, mas essa foi inevitável. Hahahaha...

O que estão achando da Laura? Ela precisa de amor assim como todo mundo :)

Esse recadinho é para dizer que a partir dessa semana teremos dias fixos de postagem, todos os DOMINGOS. está tudo pronto (tenho 9 cap/cartas escritas e estou trabalhando no décimo). Próximo domingo é apertar enviar :) Essas primeiras semanas foram complicadas porque mil coisas aconteceram e consecutivamente bagunçou minha programação, mas a tempestade já passou e aproveitei para organizar as postagens.

Até domingo.

Beijos e chocolates,
Juliane Patrícia, 26/03/2019

[CONCLUÍDO] CARTAS À MOABE - O Encontro de Uma Mulher Com Seu DeusOnde as histórias ganham vida. Descobre agora