A Quarta Carta

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Campos Verde, fevereiro de 2019

Hoje eu tive um dia horrível, Moabe.

Fui obrigada a ir em Campinas e eu detesto aquela cidade, principalmente depois de tudo.

Fui a Campinas pois precisava de um documento da minha faculdade porque como se estar fazendo uma pesquisa não fosse suficiente, Clara me convenceu a me inscrever em um programa de intercâmbio inglês, algo como uma outra pós. Uma loucura total, eu sei, mas ouvir diploma internacional gratuito foi persuasão suficiente.

O curso será custeado parte por uma bilionária e parte pela Universidade de Bristol, o esperado é que no fim do programa a pessoa volte para o Brasil e trabalhe um ano em uma fundação sem fins lucrativos da patrocinadora, trabalhe, ou seja, receba salário e depois desse um ano ficará livre para fazer o que quiser, inclusive continuar na fundação. Porém, não tem obrigação de trabalhar, a única obrigação é entregar um projeto de pesquisa que possa ser implantado em uma comunidade carente, uma vez que o grande objetivo é levar qualidade de vida para comunidades carentes ao redor do mundo. O máximo, né?

Ainda existem boas pessoas no mundo, Moabe. Essa tal Rebeka é uma delas.

Mas o foco desta carta não é o intercâmbio, é o dia ruim que tive hoje. Campos Verde está a menos de uma hora de Campinas e eu passei trinta minutos parada na estrada porque o meu pneu furou e eu não sei trocar a droga de um pneu. Eu troco lâmpada, resistência de chuveiro, gás, pinto parede, carpo, sei até mesmo bater laje e construir uma casa de pau a pique, mas não sei trocar a droga de um pneu. Meus irmãos e meu pai tentaram me ensinar, porém nunca aprendi, aparentemente a pessoa que bate laje não tem força braçal para trocar um pneu, achei isso muito frustrante, já que Clara, a que mal troca uma lâmpada, sabe. Depois que o pneu furou, coloquei o triângulo na estrada, confirmei que tinha o macaco e o estepe no porta malas, desliguei o carro, abri um sudoko que tinha no porta luvas e me sentei com os vidros abaixados esperando que alguém passasse e parasse para me socorrer já que para completar estou sem celular desde que me mudei, pois o meu espatifou um dia antes e eu escolhi não comprar outro.

Três carros passaram voando por mim e não pararam, quando estava começando a ficar irritada com o sudoko, dois caras pararam suas respectivas motos e perguntaram se eu precisava de ajuda. Fiquei morrendo de medo de descer do carro, mas eu tinha uma única opção, permanecer no carro mentindo dizendo que tinha socorro a caminho ou me arriscar e aceitar a ajuda deles. Depois de alguns segundos de hesitação, Gideon, se apresentou como bombeiro e garantiu que não faria nada além de trocar meu pneu, me senti aliviada diante da carteirinha dele e desci do carro. O outro homem era o Lucas, um motoboy que estava no meio de uma entrega para Campinas, mas ainda assim parou e ajudou. Agradeci imensamente e dividi com eles o bolo de banana que estava levando para tia Madá e minha fiel companheira, a água de coco; eles ainda me escoltaram até a rodovia Dom Pedro, pois estávamos em uma estrada secundária - que aprendi a não usar mais enquanto não estivesse com um celular - e eu segui para a Universidade; peguei um trânsito horroroso, um caminhão tombou e duas faixas da pista estavam interditadas; na Universidade me falaram que minha requisição online não existia, passei quarenta e cinco minutos tentando provar que tinha feito a bendita requisição, apenas para descobrir que devido o erro deles terei que voltar lá daqui dois dias. Tinha combinado de almoçar com a Bel, uma das minhas pessoas favoritas, em uma cantina italiana deliciosa, porém, meio fora de mão, ainda assim fui para chegar lá e bater com cara  na porta, eles estão em reforma e foram obrigados a fechar temporariamente; Bel me convenceu a ir numa hamburgueria artesanal, o hambúrguer era bom, mas o atendimento foi péssimo. Sem brincadeira, Moabe, até falei disso na página deles do Facebook, então fui deixar a Bel no serviço dela. Ela é professora de espanhol em uma escolinha em um ponto oposto ao que estávamos, pertinho da casa de um dos meus colegas da faculdade, que apareceu bem na hora que deixei a Bel na frente da escola, eu gosto do João Paulo e por isso parei para conversar, mas odiei a forma como ele riu quando uma pomba defecou em mim. Isso mesmo, uma pomba cagou bem em cima da minha blusa amarela preferida. Por que existem pombas? Elas são tão inúteis!

Fui obrigada a ir na casa da tia Madá, ela não estava, só o horripilante Saulo, o novo marido dela. Quase voltei embora cagada mesmo de tanto medo que tenho dele, pedi para o João entrar comigo, foi o jeito; porque obviamente ele me acompanhou até lá. Eles ficaram conversando na sala enquanto eu assaltava furtivamente o armário da Bel, não foi difícil encontrar uma blusa, difícil foi ver fotos do Joel (estavam dentro de uma caixa que eu esbarrei quando peguei a blusa e fucei quando vi que eram fotos), meu ex-namorado. Bel adora fotos e até bem pouco tempo eu tinha a mesma adoração pelo Joel e eu não sabia que ela tinha guardado as fotos, mas deveria ter imaginado, afinal, eram fotos nossas e não apenas dele. Foi um baque dar de cara com tantas lembranças! Meio que sai correndo da casa da tia Madá, eu estava ansiosa para voltar logo para meu lugar seguro. Deixei João na casa dele e peguei a estrada de volta para Campos Verde, tirando os tremores da minha mão foi tudo tranquilo até pisar na calçada de casa e dar de cara com a Ruth, o lobo em pele de ovelha, quando éramos pequena ela era estranha e a toleravámos porque era nossa prima. Ruth, Noemi e eu temos a mesma idade, Mimi e eu somos de fevereiro e Ruth de março, por isso sempre fomos obrigadas a brincar juntas; Mimi e eu sempre nos damos muito bem, os pais dela também fazem missões e diferente de mim, ela optou por continuar vivendo para missões, quando você cresce uma criança ‘missionária’ não é difícil prosseguir e escolheu continuar, porque tem um chamado nesta terra, o de socorrer almas aflitas, inclusive, fez técnico de enfermagem justamente por isso. Hoje Mimi está no Haiti e eu sempre senti muita falta dela, coisa que nunca aconteceu com a Ruth.

Enquanto Mimi é um ser de luz e amor, nossa prima mais nova é perversa e cruel e sempre deu um jeito de todo mundo achar que ela é um anjo; ela casou há um ano e meio e está com uma barriga enorme e continua a mesma perversa de sempre. Fez questão de falar entre sorrisos condescendentes e esnobes e com aquele ar de ingenuidade - que nunca me enganou - sobre como sente muito por tudo e como sempre soube que Joel e eu não dariamos certo, que o faro dela nunca a enganou e mais um milhão de coisas idiotas. E tive que ouvir sobre como ela optou por um nome comum para a bebê, Sarah, da sua alimentação esquisita por causa da gestação e de como ela e Joaquim estão felizes e mais uma infinitude de coisas que queria apenas esfregar na minha cara, como se eu fosse uma coitada por não tê-las. Por não estar com paciência falei de como meu foco é minha educação e não me casar com o primeiro idiota que cruzasse meu caminho e quisesse me engravidar; sobre como estou indo muito bem na minha pós graduação e que sim, estou feliz solteira, minha felicidade não depende de estar em um relacionamento.

Eu detesto a Ruth e não é nem por ela ser esse tipo de pessoa que acha que as suas conquistas são melhores que a dos outros, eu a detesto porque ela adora passar por boa moça quando na realidade é uma cobra pronta para o bote e porque é cruel propositalmente. Quando eu voltei da Etiópia ela, Mimi e eu passamos alguns dias na casa da tia Glorinha, certo dia Mimi me convidou para ir ao circo e não a convidamos, nem lembro porque… Quando voltamos do circo a tia Abigail, a mãe da Mimi, estava lá e Ruth tinha inventando que brigamos com ela e falamos coisas horríveis sobre os seus dentes (ela usava aparelho porque tinha dentes de cavalo), eu levei uma bronca e fui mandada para casa, Mimi levou uma surra de proporções épicas, pois para tia Abigail Ruth era uma santinha que nunca fazia nada de errado e ela jamais iria mentir daquele jeito. Minha mãe que conhecia Ruth muito bem não acreditou em nada, mas não teve jeito, Mimi já tinha levado uma surra que a deixou roxa enquanto Ruth ganhou uma bota que queria da tia Abigail para amenizar a malcriação da filha; desde então evito o máximo possível minha nada adorável prima.

Ruth me esgota mentalmente.

Estava deitada na rede com Mozart me recuperando da visita não esperada quando o telefone tocou, era a tal Mical, queria Mozart de volta, entrei em uma discussão infinita, não devolveria e não devolvi. Até tive uma atitude infantil, desliguei o telefone e tirei do gancho (sim, nosso telefone fixo é de gancho, já não basta ser fixo na era dos celulares e ainda é de fio!) e fui ajudar dona Joana com os biscoitos que ela resolveu fazer, foi a única parte boa do meu dia. Quando meus avós saíram para irem a igreja discuti com Seo Jeremias, ele queria me obrigar a ir na igreja. Por que gente velha não consegue respeitar limites? Logo depois tomei um longo banho e me sentei para trabalhar, mas cai na idiotice de abrir o Facebook e me distraí, quando percebi já tinha passado uma hora e eu estava cansada, foi quando resolvi escrever para você e essa é a primeira vez que achei estranho te escrever, porque eu quero um conselho, uma opinião, ou apenas um abraço, 'tô me sentindo tão sufocada, Moabe! E eu nem posso falar disso com pessoas reais porque ninguém vai entender, talvez um psicólogo, mas eu não quero me sentar no divã, quero apenas um abraço.

Laura.

[CONCLUÍDO] CARTAS À MOABE - O Encontro de Uma Mulher Com Seu DeusWhere stories live. Discover now