Capítulo 44

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   Levei Ian para minha cama e o obriguei a se deitar de costas para cima, para que eu pudesse limpar suas feridas.
  Peguei água e um pano macio para poder fazer a limpeza.
- Meu Deus... - sussurrei chorando.
- é horrível. Não é? -perguntou Ian enojado. - não sente repulsa?
- não... - sussurrei.
   Minhas mãos estavam trêmulas, tinha medo de machucar ainda mais.
  Assim que o toquei, senti seu corpo inteiro enrrigecer.
- argh!-resmungou ele.
- desculpe! -falei com a voz rouca.
- não tem problema, estou acostumado com a dor...
- ninguém se acostuma com a dor. E não é disso que estou falando. Eu sinto muito por ter lhe causado isso!
- não Helena! -disse ele irritado.
  Ian se apoiou nos braços para poder olhar para mim.
- coloque uma coisa na sua cabeça, isso não foi culpa sua! Isso é muito mais... Argh!-resmungou ele.
- pare de tentar fazer eu me sentir melhor Ian. Eu sou a única culpada disso tudo. Se eu não fosse tão cabeça dura, irresponsável e infantil, isso nunca teria acontecido... Então não venha me dizer que não tenho culpa, porque sei que tenho!-falei irritada.
  Ian se deixou cair na cama novamente, seu rosto estava virado para o outro lado, fitando a porta. Eu estava sentada na cama ao seu lado, limpando suas feridas.
- isso não é culpa sua!-sussurrou ele novamente.
- como pode não ser Ian? Quantas vezes isso aconteceu depois que eu cheguei? -perguntei irritada.
- não vou responder! -disse ele irritado.
- foi o que pensei!
-foram só umas duas ou três vezes. Mas isso não tem nada a ver com você Helena. Talvez comece por sua causa, mas o verdadeiro motivo é sempre outro... Como se me bater não fosse o suficiente, ele tem sempre que me fazer lembrar! -disse Ian com a voz amargurada.
- lembrar de que?-perguntei confusa.
- não sente nojo?-perguntou ele mudando de assunto. - Não sente repulsa por ter que se casar com um homem que se submete a isso? Um covarde que deixa o pai o espancar? Eu teria nojo...
- pare com isso Ian! Eu não sinto nojo. Sei que tem alguma coisa a mais que não está me contando. Eu te conheço. Você não se sujeitaria a isso, se não achasse que merece... Por favor Ian, deixa eu te ajudar! -implorei a ele.
- não... Isso é pessoal! Um problema da nossa família. - disse ele.
- sou sua noiva. Em breve serei sua esposa. Não acha que já está na hora de confiar em mim?
  Senti seu corpo relaxar. Como se ele tivesse desistido de tudo.
- você tem razão! -disse ele.- A culpa é toda e exclusivamente minha. Eu mereço passar por isso mais do que você imagina, mereço cada chibatada, cada xingamento...
  Meu coração se apertou.
- tudo começou quando eu tinha cerca de doze anos. Eu era uma criança na época, mas já tinha responsabilidades, responsabilidades das quais não fui bom o bastante para assumir...
  Eu não podia ver seu rosto, pois ele estava virado para o outro lado, me impedindo de saber o que ele realmente estava sentindo.
- Dorian tinha quinze anos na época. Nós passávamos a maior parte do tempo na casa da vovó. Tinha uma família que morava perto de lá. Eles tinham cinco filhos homens, todos tinham menos de onze anos. Eu e meu irmão gostávamos de ir lá bricar com eles.
  Eu ouvia atentamente a história de Ian, não sei por que mas meu coração estava cada vez mais apertado.
- O nome dele era Anthony... Ele tinha só cinco anos. E era minha responsabilidade, meu irmão mais novo era minha responsabilidade Helena...-  dizia Ian com a voz trêmula.
  Não sei dizer com certeza, mas acho que ele estava chorando, pois a cama estava com pequenos tremores. Ou seria eu quem estava tremendo?
- sua família... Nunca imaginei que tivesse outro irmão. Nada nem ninguém deixou transparecer...- falei surpresa.
- as pessoas tendem a guardar segredos Helena, e nós somos muito bons nisso. Nós não gostamos de lembrar... Bom, pelo menos a maioria de nós...
  Ian se perdeu em pensamentos por alguns minutos, então simplesmente voltou a falar:
-Dorian se achava velho de mais para brincar com a gente, então só eu e Anthony íamos para a casa dos vizinhos. O meu pai sempre deixou bem claro que era pra eu tomar conta do Anthony quando Dorian não estivesse por perto, e eu fazia sem questionar, afinal eu amava meu irmãozinho.
  Ele parou e ficou alguns segundos em silêncio. Minha curiosidade estava me matando, mas tinha medo do resto da história.
- aquela tarde, vovô disse que não era pra gente sair, porque eles receberiam visitas. Mas éramos crianças, não queríamos ficar em casa com gente velha e chata. Eu não queria... Então Anthony e eu fugimos. Para chegar na casa dos vizinhos, havia um grande perigo que todos ignoravam... A linha do trem.
  A voz de Ian de repente ficou rouca.
- eu não reparei que Anthony tinha sumido, ele não era muito falante na época. Mas quando cheguei na casa, percebi que ele não estava mais lá. O apito alto do trem me fez correr, correr mais do que nunca em toda minha vida... Mas não deu tempo. O pé dele ficou preso nos trilhos e o trem... O matou! Meu irmão morreu na minha frente, e eu não pude fazer nada.
  Cobri a boca para evitar que o meu soluço de choro o deixasse ainda mais triste.
- Anthony era um menino lindo. Cheio de vida, inteligente e um amor de criança. Era comportado, silencioso e amável. Todos se encantavam com sua beleza e inocência.
  Ian suspirou profundamente.
- Minha mãe,  meus avós e Dorian me perdoaram. Mas meu pai nunca me perdoou. Ele me deu uma única responsabilidade, e eu fracassei. Ele nunca vai me deixar esquecer o que eu fiz, e sempre terei as marcas para lembrar que a culpa é minha. Aquele foi o primeiro dia em que eu apanhei, eu quase morri. Queria ter morrido! Tentei me matar três vezes, mas nem isso consegui. Então eu entendi que meu castigo é conviver com a culpa de ter matado meu irmão. Por isso deixo ele me bater... Pra me lembrar que se hoje Anthony não está aqui... A culpa é minha!
  Não consegui falar nada, apenas me deitei ao lado dele e acariciei seus cabelos negros.
- a culpa não foi sua Ian. Foi um acidente, vocês eram crianças...
- para Helena, eu ouvi esse discurso a vida inteira. Sobrevivi do olhar de pena das pessoas. Sei que sou culpado, nada vai mudar isso! Minha falta de atenção, minha irresponsabilidade matou meu irmão. -disse ele irritado.
-pare com isso Ian! Era você quem estava controlando o trem? Foi você quem prendeu seu irmão aos trilhos? -perguntei irritada.
- não, mas...
-mas nada Ian. Deixa de ser burro, você passou a vida inteira se culpando por um acidente, deixando ele dizer que a culpa foi sua, quando na verdade não foi... Você acreditou nas palavras que ele quis que você acreditasse, você era só uma criança assustada que acredita em tudo o que o pai diz... Tá na hora de crescer Ian. Passou da hora de matar esses demônios que te perturbam. A culpa disso não é sua, e você é muito estúpido se não consegue ver isso!-desabafei irritada.
  Ian ficou quieto por alguns segundos, então se virou para me encararar. Sua expressão me deixou um tanto surpresa, ele tinha um leve divertimento no olhar.
- você sabe que chamar uma pessoa de burra, criança e estúpida, não é a melhor maneira de consolar ela... - disse ele.
- e quem disse que eu estava te consolando? Eu estava falando a verdade. Te alertando. Você precisa parar de se vitimizar!- falei convencida.
  Ele sorriu e tocou suavemente seus lábios nos meus.
- obrigado! -sussurrou ele.
  Sorri para ele e me aconcheguei mais perto de seu corpo, sentindo o calor irradiar dele.
- não devia ficar tão perto assim... - avisou ele sorrindo de lado.
- gosto do perigo. Apesar de não está vendo nenhum!-provoquei.
- você não perde por esperar! -disse ele.
- isso é uma ameaça? -perguntei sorrindo.
- não... é uma promessa! -disse ele maliciosamente.
  Dei uma risada nervosa. Desde quando estamos tão íntimos a ponto de falar essas coisas? E ele não está brincando como o Dorian faz... Ele falou sério.
  Um arrepio varreu meu corpo. Melhor não pensar nisso. Não agora e não nessa situação.
  Peguei a mão dele e enlacei seus dedos nos meus, dando um beijo suave em sua mão sussurrei:
-Boa noite Ian...
  Ele não respondeu, já havia dormido de exaustão.
  Nos cobri até a base da cintura, para que a coberta não grudasse em seus machucados, me aproximei até que minha cabeça ficou apoiada em seu ombro, onde finalmente eu dormi.

Casamento Arranjado [Completo]Where stories live. Discover now