1. O despertar das chamas

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O tutor meio calvo e grisalho brandiu a vareta contra a palma da mão do rapaz. Ele suportou a dor mordiscando o interior dos lábios.

Isso termina hoje.

O jovem era magro, cabelos pretos curtos, mas o que mais chamava atenção nele era sua palidez, pois raramente via a luz do sol. Diferente dos outros garotos de sua idade, passava dias e noites com diferentes tutores estudando.

— Nunca tive um aluno tão burro! Não vê que este valor não pode ser maior que o todo?

— E por que não poderia?

— Isso é matemática e não magia, moleque! Nem um maldito guldo poderia fazer três e três formar sete!

— Aposto que poderia...

— Não estou recebendo para discutir, me dê a outra mão, seu insolente!

O garoto olhou o tutor com ódio e ofereceu a mão esquerda. Havia algo de sinistro na maneira que as chamas das velas produziam reflexos nos olhos cor de mel do adolescente.

Vem, bate! Bate com força! Toda sua força, seu desgraçado!

O tutor bateu mais uma vez com força. O garoto tremeu sem alterar sua expressão, como se desafiasse o professor.

Isso, seu careca! Bate forte!

A seguinte a veio com mais força. O garoto estreitou os olhos.

Mais forte!

O tutor tremia suas bochechas, a face rubra inflada pela cólera. A última pancada fez a vareta quebrar e tirou sangue.

Sim, eu posso sentir, minha mão queima. Eu sinto o fogo...

As chamas das velas se encolheram, deixando a sala momentaneamente mais escura. Nas quinas uma escuridão borbulhante surgiu por um instante.O jovem fixou o olhar na mão ferida. Havia um leve brilho esverdeado em seu olhar. O sangue ficou preto e duro, rápido demais. Os olhos do garoto voltaram-se para o tutor que largou a vareta no chão. O olhar do rapaz carregava consigo uma sombra sinistra.

— Me desculpe, jovem mestre. — disse o idoso empalidecendo.

O tutor levou as mãos na gola alta ornamentada com bordados.

— Que calor... Eu exagerei... Mas é que eu não aguento! Tanta burrice... Tanta teimosia!

Está sentindo um calorzinho, hã? Vamos ver quem é o burro.

O professor ficou bem vermelho e usou um lenço para enxugar o suor que brotou em sua testa alta.

— Mas estamos em pleno inverno... Eu julgo que... Fiquei nervoso demais. Sim. É isto.

O garoto fechou a mão ferida sentindo a dor pulsar. As chamas das velas cresciam e depois encolhiam de modo sobrenatural.

Vamos, vamos! Queime!

O professor olhou ao redor, espantado. O que estaria acontecendo? E então, chamas surgiram do nada sobre as mangas longas de sua blusa.

— Ahh! O que é isso?

O homem batia nas chamas com seu lenço, tentando apagá-las, mas logo o fogo cresceu. Sentindo a carne queimar, o tutor perdeu toda a compostura e saiu correndo do local gritando por socorro. O fogo cresceu depressa ao redor do homem, como se ele fosse feito de palha.

O garoto finalmente esboçou um sorriso. Pegou a lamparina a óleo que estava sobre a mesa e derramou o conteúdo em cima dos cadernos. Com uma vela, ateou fogo na papelada. As chamas logo se espalharam. Ele também saiu da sala gritando.

— Fogo! Fogo!

No longo corredor, pode ver o corpo do tutor queimando, caído perto da saída.

— Socorro! Fogo!

Um ar gelado desceu pela sua garganta e esfriou seu estômago. Ele parou ao lado do corpo cremado e chutou-o.

Seu verme! Agora teve o que merecia!

Depois disso, seguiu correndo, desceu as escadas e saiu da ala dos fundos. Chegou ao pátio interno de sua casa limpando lágrimas dos olhos. Não eram lágrimas de tristeza, simplesmente os olhos estavam irritados devido à fumaça.

— O que houve, mestre Kurdis? — indagou um dos criados.

— A sala de estudos está queimando! O professor... — o rapaz emulou uma voz embargada — eu acredito que ele está morto!

O incêndio só não consumiu toda a casa da família, porque um dos vizinhos era um feiticeiro.

Kurdis observou com olhos arregalados e queixos caídos quando o feiticeiro bateu seu cajado no mármore do pátio interno. Uma onda de energia irradiou percorrendo o solo em todas as direções.

Lorran era magro, tinha os cabelos despenteados e estava de pijamas. Kurdis já o vira em seus trajes pomposos de mago antes, mas mesmo com roupas de baixo o homem ainda era magnífico.

Toda água da piscina flutuou dividindo-se em bolhas. O feiticeiro girou seu cajado no ar e toda aquela água subiu descrevendo um arco e caiu na forma de uma chuva grossa sobre a ala dos fundos.

Uma mistura de fumaça e vapor bloqueou a visão do garoto, mas ele ainda podia enxergar a silhueta do mago girando o cajado sobre a cabeça.

Uma ventania fria se formou no local e, antes que o garoto pudesse compreender o que estava acontecendo, o incêndio foi extinto. O mago emergiu da névoa, seus cabelos agora encharcados caídos sobre a face.

— Ei, você... É o filho de Jan Mussak?

— Sim.

— Seu nome é Kurdis...

— Sim.

— Como esse incêndio começou?

— Foi um acidente.

Lorran apertou as bochechas do garoto com força e olhou fundo em seus olhos. O mago tinha um hálito forte que fez os olhos de Kurdis arderem. Disse baixinho, num tom de ameaça.

— Não minta para mim, rapaz. Seu pai pode ser importante, mas isso não o livrará de ter problemas.

— Eu já disse... Foi um acidente. Eu não pretendia...

Lorran fungou perto da orelha de Kurdis.

— Eu sinto o cheiro da magia do fogo exalando dos seus cabelos. Sei que foi você que provocou o fogo.

Kurdis olhou para o mago, com os olhos arregalados.

Estou frito!

— O que vai acontecer é o seguinte, rapaz: pegue suas coisas. Diga adeus para sua família. Uma pessoa como você não pode ficar por aí... O levarei pessoalmente para Valta.

— Valta?

— É. Sua vida de patrício acabou.

— Mas o que tem em Valta? É uma prisão?

Lorran gargalhou alto.

— Prisão? Ora, jovem Kurdis. É em Valta que fica a sede de nossa ordem. É lá que todos os magos do reino são treinados.

Ufa! Ele não sabe... Não sabe que matei meu professor.

— Mas meu pai...

— Eu vou ter uma conversa com seu pai. Ele vai entender. E você, trate de pegar suas coisas. Partiremos amanhã.

O Bruxo e a Foice SombriaWhere stories live. Discover now