47. As Chamas de Fre'garzam

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Kurdis ergueu o lampião e iluminou os degraus que antecediam o pórtico da hospedaria. Uma mulher vestida de preto estava sentada ali, chorando.

— Com licença, Djista, preciso usar meu quarto.

A mulher olhou para ele, seus olhos revelavam um espaço vazio de onde escorriam lágrimas escuras como piche. Kurdis entrou na hospedaria de subiu a escada em ele que ficava no vestíbulo. O choro de Djista preenchia o local. Ele seguiu pelo corredor até o último quarto, abriu a porta e entrou.

Tocou o assoalho no local onde soltava algumas tábuas e costumava esconder a foice.

— Está em segurança...

Em seguida, se levantou e deixou-se na pequena cama, ao lado da janela.

Agora vou dormir.

O choro de Djista continuava ressoando em torno de seus ouvidos. Mas ele se concentrava para dormir. Uma sombra velava sua cama. A sombra o seguia até mesmo para dentro de seus sonhos.

— Boa noite, Carc'limar.

Kurdis respirou profundamente. Ali, ele conseguia fazer um ciclo longo de respirações. Contava até sessenta na inspiração, segurava o ar contando a mesma medida e depois expirava, na contagem de mais sessenta.

Kurdis abriu os olhos, estava no acampamento, próximo à sua barraca de campanha. O chão estava coberto de corpos. Eram todos soldados e magos aliados e kunérios que ele havia matado durante a guerra. Ele precisava prestar atenção no solo para não pisar nos cadáveres. Enquanto ele andava, todos eles o seguiam com as órbitas vazias, escuras. As expressões eram cadavéricas, pálidas, a pele fina sobre os ossos do crânio lhes davam a aparência de seres famintos.

— Me deixe morrer! — Uma mão segurou firme em seu tornozelo direito. Era Escau, o soldado que Kurdis matou durante a patrulha próxima ao Monte Gol'dorth.

— Nós éramos amigos! Por que me matou? — Locas, outro soldado, segurou o pé esquerdo de Kurdis.

— Deixem-me passar! Deixem-me passar! — A foice se materializou nas mãos de Kurdis e ele decepou os braços dos soldados que o seguravam.

Kurdis correu pisoteando os cadáveres falantes e entrou em sua barraca. Ali, viu seu saco de dormir e deitou-se. Voltou a respirar contanto de um a sessenta. Os cadáveres não conseguiam ficar de pé, mas rastejavam, um a um, para dentro da barraca. Rolok subiu em cima de Kurdis.

— Traidor! Traidor! — o soldado gritava enquanto tentava enforcar Kurdis.

Mais cadáveres entravam ali. Um soldado kunério arrancou uma de suas botas. Kurdis sentiu o toque gelado das mãos do defunto espremendo seus pés. Eles doíam, estavam cheios de bolhas.

— Assassino! — Pezão puxava seus cabelos.

A sombra de Carc'limar parecia se divertir, observando a cena de pé, ao lado de Kurdis, agora coberto por uma dezena de cadáveres enfurecidos.

— Boa noite, Carc'limar! — Kurdis conseguiu dizer com um fio de voz esganiçada.

Kurdis abriu os olhos, estava no átrio de sua casa em Tédris. Chovia forte e a piscina no centro do pátio coletava a água da chuva. Kurdis entrou na chuva. A água estava gelada. Mergulhou na piscina. As águas eram profundas e escuras. Ainda ouvia o distante choro de Djista e se misturando aos protestos dos soldados mortos.

Kurdis prendeu a respiração e mergulhou. Um, dois, três, quatro, cinco... Nadava com afinco. A profundidade da piscina de sua casa não passava de um metro, mas ali, nadava como se fosse um poço sem fundo. Quarenta e cinco, quarenta e seis, quarenta e sete...

O silêncio finalmente o envolveu. O breu. A escuridão. A paz.

Consegui! Consegui! O sonho, em um sonho, dentro de um sonho. O meu refúgio. O único lugar onde Carc'limar não pode sondar meus pensamentos. O degraçado quer o meu corpo, a minha alma. O rito vai finalmente concretizar seu intento. Eu ficarei preso no fundo da minha mente e ele irá controlar meu corpo.

Maldito seja, Carc'limar! Eu juro que prefiro me atirar no Poço de Skat'challur a entregar meu corpo a você!

Fre'garzam! Fre'garzam! Eu o invoco! Mostre um meio de me livrar de Carc'limar! De me livrar dos Wux'shein! Ajude-me, Fre'garzam!

Um mosquito preso no pote de mel. Treme as pernas, agita as asas, mas só afunda, mais e mais no doce néctar da morte...

Sim, sou apenas um mosquito! Tenha piedade!

— Piedade? Misericórdia? Acha mesmo que sou capaz disso?

Eu não o conheço... Mas está me dizendo que é incapaz disso?

— Diga-me por que eu deveria me preocupar com um mosquito que caiu na bebida de um fiel servo?

Talvez eu possa servi-lo melhor que Carc'limar.

— Estou ouvindo...

Entendo que deseja que sua vingança recaia sobre Kedpir. Não é verdade que Carc'limar já tentou conquistar Kedpir mais de uma vez e falhou?

— E um mosquito kedpirense pensa que pode se sair melhor nessa tarefa?

Certamente entendo mais sobre Kedpir, suas defesas... Sobre os Maihari que Carc'limar. Quem melhor que um Maihari para conhecer suas fraquezas?

— Está desesperado, isso eu posso notar. Meu servo é fiel... E mesmo tendo falhado em sua última tentativa, está prestes a adquirir todos seus poderes e conhecimentos para colocá-los a meu serviço.

Então está me dizendo que um mero mosquito tem potencial para trazer os resultados que deseja... Serei então mesmo este apenas este mosquito? Ou algo mais?

— E o que pensa que tem a me oferecer, pequeno Daman?

Uma nova abordagem... Diz o ditado: apenas os tolos cometem os mesmos erros esperando atingir novos resultados. Não seria hora de experimentar algo novo? O dragão pode ser forte e poderoso, mas ele é conhecido... Estudado. Seus inimigos estão preparados para enfrentá-lo. E quanto ao mosquito? Um ataque que venha de dentro de sua casa, abaixo de seu próprio nariz. Talvez, eu possa ter sucesso onde seu velho servo falhou.

— É... talvez... Vejamos se o mosquito consegue escapar do melaço primeiro... Vou lhe conceder o dom do mistério. Vou lhe mostrar minhas chamas...

Kurdis tocou o fundo da piscina. O breu deu lugar a uma luz verde e tênue. Estava num corredor e, no fundo deste, havia um portão circular. O polvo de doze tentáculos estava esculpido em sua superfície. A cabeça no centro, os tentáculos sinuosos irradiando para as bordas. O metal negro reluzia à luz esverdeada de um cardume de olhos que nadavam ao agitar seus longos cílios.

Kurdis caminhou até o portão. Ali não estava na água, mas também, não era o ar. Estava em um fluido transparente e de densidade sutil. O cardume de olhos nadava ao seu redor. Milhares de olhos que observavam de modo penetrante.

Kurdis já tinha visto aquele símbolo nos livros do Wux'shein. Fre'garzam era retratado como um polvo com muitos tentáculos e muitos olhos. O portão se abriu e dentro havia uma forja iluminada pelo intenso fogo verde.

— Olhe para o meu fogo. Ele irá arder dentro de sua mente. Dentro das chamas da minha vontade, seus pensamentos estarão seguros. Todavia, os mortais não conseguem carregar minha chama por muito tempo... Você terá apenas alguns dias para provar seu valor.

O Bruxo e a Foice SombriaWhere stories live. Discover now