36. Contato inesperado

3 1 0
                                    

A pequena assistente de Gando limpou a garganta parada na porta da sala de tradução. Nervosa, ela puxou sua longa trança cor de mel de um lado para o outro do ombro.

— O que foi, Micha? — indagou o velho Gando, impaciente.

— Desculpem interromper... Mas há um shirogue lá embaixo querendo ver o senhor Toluco.

Kurdis sentiu o estômago pesar.

Estou frito! Ele me descobriu. Estou sem equipamentos para confrontá-lo...

— Vai ficar aí com essa cara de paisagem, senhor Toluco? Não ouviu o que ela disse?

— Ah, sim. Já vou... Me desculpe, eu...

Kurdis se levantou, apertando os dedos com força para espantar a tremedeira que surgiu com a notícia.

— Com a sua licença, senhor Gando.

Kurdis saiu olhando para os lados. Talvez pudesse encontrar algo para usar como um conduíte para sua magia.

— Me acompanhe, por favor. — Micha tinha um rosto simpático. Suas roupas sóbrias, cobrindo até o pescoço, lembravam o uniforme dos acólitos do Templo de Gides.

— Sim — Kurdis segurou as mãos atrás das costas, para deixá-las quietas.

— Não costuma receber visitas, não é mesmo, senhor Toluco? — Micha dava passos pequenos e silenciosos. Seus calçados tinham um solado macio e faziam seus pés parecerem grandes demais.

— Eu não tenho muitos conhecidos...

— Sabe, os shirogues são ótimos clientes. Pagam muito bem!

— É mesmo?

— Aposto que ele tem uma encomenda para o senhor.

É... o pior é se eu for a encomenda dele.

Quando Micha caminho na direção dos fundos, Kurdis indagou — Ele não está esperando lá fora?

— Oh, não. Ele está na sala de chá.

— Temos uma sala de chá?

— É logo ali — Micha indicou a pequena porta à esquerda.

Quando ela abriu, veio dali forte luminosidade.

— Como está o chá, senhor Clésio?

— Perfeito, obrigado — respondeu o shirogue de olhos verdes, olhando por cima dela nos olhos de Kurdis.

Micha fez uma mesura, deu espaço para Kurdis entrar e retirou-se, fechando a porta.

Clésio estava sentado numa poltrona ladeada por uma mesinha cujo tampo era feito de mosaico de cacos de vidro colorido. Uma pouco de luz do sol batia no tampo, fazendo-o cintilar e tingindo o manto banco do shirogue com reflexos de alguns pontos de luz colorida. Sobre a mesa estava a chaleira e um par de xícaras de porcelana esverdeada.

Ao lado dele, havia uma ampla janela aberta que exibia uma belíssima vista de toda cidade e do mar.

— Ah, senhor Hidenar Toluco! Como está sua perna?

— Ótima! Novamente agradeço pela ajuda!

— Sente-se!

Havia outra poltrona coberta por um tecido azulado bordado com padrões florais com fios de prata que o sol fazia brilhar.

Kurdis engoliu em seco e se sentou sentindo a textura agradável do tecido dos braços da poltrona sobre suas mãos.

— Só fiquei sabendo a pouco tempo sobre a aposentadoria do senhor Rastirim... Há coisa de um ano, pedi para que ele traduzisse este livro. — Clésio pegou o volume que estava em seu colo e esticou-o na direção de Kurdis. O kedpirense se inclinou e pegou o livro, voltando a se ajeitar na poltrona.

Conheço essa obra! Princípios de condutividade de Jolreq. É um tratado de magia...

— A tradução do senhor Rastirim não foi ruim, porém, certamente incompleta. Penso que o senhor certamente conseguirá fazer uma tradução precisa.

— Isso me surpreende. O que o faz pensar que eu seria mais capaz que meu antecessor, senhor Clésio?

— Está claro para mim, que além de tradutor, o senhor é um mago foragido de Kedpir. E não tente me enrolar... — Clésio inclinou-se fixando um olhar inquisidor em Kurdis.

— O tratado não os obrigaria a me deportar para Kedpir?

— Muitas leis existem, senhor Toluco... Se é que este é mesmo seu nome. Quanto à necessidade destas, ou mesmo suas vias de cumprimento, acredito haver lacunas neste sentido.

— Entendo — a tensão nos ombros de Kurdis diminuiu e ele afundou na poltrona.

— E então, em quantos dias posso buscar minha tradução?

Kurdis avaliou o calibre da cópia e tamanho da letra do escriba.

— Não mais que seis dias.

— Ótimo! Estou disposto a testar novamente algumas teorias e fórmulas aí descritas.

— Ficarei contente em colaborar, afinal, estou em duplo débito para com o senhor.

— Certamente. Se me permite perguntar... Está envolvido nessa disputa das casas comerciais? Desaparecimento de embarcações?

É melhor eu não mentir... Tenho a sensação que ele irá perceber.

— Sim, mas estou sendo coagido.

— Entendo. Muito bem, vou observar a evolução desta questão. A disputa entre as casas comerciais é uma constante aqui em Dera. É inútil para nossa ordem envolver-se nesses assuntos.

— Interessante.

— Antes de ir, devo adverti-lo: considere-se uma pessoa de sorte de ter sido identificado como foragido por mim e não por algum outro colega meu. Muitos de meus companheiros de ordem são afeitos aos protocolos. Portanto, cuide-se e fique longe de nós.

— Obrigado pela advertência, sinto que estou triplamente endividado agora.

— Ótimo. Tenho certeza de que nossas transações daqui em diante nos trarão benefício mútuo.

O Bruxo e a Foice SombriaWhere stories live. Discover now