20. Castelinho

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Kedpir era um lugar perigoso, mas Dera também vinha mostrando seus perigos. Kurdis passou a usar um caminho longo para ir e voltar do trabalho. Seguia pela via lateral do canal até a rua das três pontes velhas. Ele não tinha que cruzar nenhuma delas, pois dali se seguiam os três últimos quarteirões até o cais. Mas era uma rua muito movimentada, sendo a principal via de acesso terrestre até o Porto do Castelinho.

— Por que chamam esse lugar de Porto do Castelinho? — Kurdis disse num deravo quase perfeito. Melhorou bastante no mês que se seguiu ao assalto.

Gustapo apontou para um muro de pedra perto da esquina da rua das pontes. O muro era um pouco mais alto que as construções ao lado e havia uma escadaria de madeira mais recente que dava acesso a três casinhas de madeira apoiadas no alto. — Está vendo aquele muro? É tudo que sobrou do castelinho. Ele ruiu após um incêndio, há mais de cinquenta anos. A muralha frontal e a fachada eram de pedra, mas a parte de trás da construção quase toda de madeira.

Kurdis carregava caixas para o convés do Rainha Lucca. Mesmo usando o artifício de reduzir o peso das cargas, vinha ganhando alguma musculatura.

— Por que alguém faria uma construção assim?

— O Barãozinho era um comerciante rico e dono de quase toda essa região. Ele queria receber um título de nobreza. Começou a construção de seu próprio castelo pela muralha, mas trazer as pedras era caro demais. Com o tempo ele foi diminuindo sua ambição e construiu uma versão reduzida que imitava o castelo real.

— Entendi.

— É como dizem por aqui. Muita ambição leva a ruína. O Barãozinho e toda sua família morreram no incêndio. E dizem que foi o Rei Junkiou que mandou queimar o lugar.

— Os reis de Kedpir não são menos simpáticos. — encostou-se um momento na amurada para descansar.

— Algumas casas têm dificuldade de aceitar o poder da coroa. Pelo menos meia dúzia de casas comerciais já caíram ao se indispor com a realeza. Você escuta essa conversa nas tabernas... Que os nobres sugam a riqueza que o comércio produz... Enfim... É um mau negócio conspirar contra a nobreza.

— De fato.

Kurdis ficou em silêncio, imaginando um castelo construído atrás daquele muro. Um dia, duas semanas depois, foi até a praça do castelo com Djista para comemorar o Hostírio, festival dedicado à purificação das trompetas sagradas. Foi quando viu o Castelo Branco pela primeira vez. Não se via pedras na construção. Ele era todo coberto por argamassa calcárea.

Será que o castelinho também era pintado de branco?

O apito de Turzo soou três vezes vindo do armazém. Kurdis voltou a trabalhar. Era uma advertência, logo aplicaria algum desconto em seu pagamento.

Não posso ficar nessa vida por muito mais tempo. Esse Turzo já está me enlouquecendo!

— Eu quero aprender a ler em deravo. Pedi ao senhor Kravel, mas ele recusou.

— Ele ficou muito chateado com o negócio frustrado... Não espere nenhuma ajuda dele, exceto mantê-lo empregado sob a supervisão do Turzo.

— É... Não sei como arranjar um tutor.

— Por que não pede para a Djista?

— Ela sabe ler? Ela nunca me falou sobre isso...

— E você perguntou?

— Não.

— Você não conhece nossos costumes, não é? Então não sabe que muitas mulheres aprendem a escrever para administrar negócios em geral, como restaurantes, oficinas e hospedarias.

— As coisas não funcionam assim em Kedpir...

— Sei que não. A única chance de destaque que as mulheres têm em seu reino é casar com alguém importante, ou nascer com magia em seu sangue.

— Falando nisso. Outro dia me contaram que todos os Shirogues são homens. O que acontece com as mulheres de sangue mágico? Não ouvi falar em feiticeiras por aqui.

— Realmente, não temos. E não me pergunte porque...

— E sobre o tal Breffen? Descobriu alguma coisa?

— Não. Certamente é um estrangeiro. Esse não é um nome comum por aqui.

— Sabe Kurdish — Gustapo apontou para a cicatriz no pescoço e falou baixinho — esse episódio do assalto ficou muito mal explicado... Não faz sentido, sabia? Um cara comum escapar de um agente do Véu Cinzento... Cá entre nós... E olhe que sou seu amigo... Você é um feiticeiro foragido, não é?

— Não diga besteira! O que um feiticeiro estaria fazendo carregando caixas?

— O que todo feiticeiro renegado kedpirense estaria fazendo: se escondendo para tentar salvar a própria pele.

— Digamos que está certo. Eu deveria me preocupar?

— Se isso fosse mesmo verdade, talvez explique por que o Véu ainda não agiu novamente. Eles não costumam cair no mesmo erro. Estão observando e planejando a próxima ação. Se quer um bom conselho: livre-se daquela relíquia.

— Mais fácil dito do que feito...

— Se eu fosse você, venderia para o duque e depois, se fosse muito importante recuperar, tentaria comprar de volta. Um objeto de cobiça fica mais bem guardado com quem tem dinheiro para proteger seu patrimônio.

— Sabe, Gustapo! Sem querer, você me deu uma dica que vale ouro!

***

Djista franziu o cenho. Conversava com Kurdis na cozinha, após o horário do jantar.

— Em que ler palavras num papel vai ajudar um estivador?

— Este é apenas um trabalho temporário. Eu leio e escrevo muito bem em minha própria língua. As letras de vocês... são estranhas e difíceis de deduzir.

— Deduzir?

— Tentei ao ver placas e alguns escritos lá do armazém... Mas vocês têm letras demais.

— É que nossa escrita usa ideogramas aliados aos símbolos de som. Leva algum tempo para aprender. Não é fácil.

— Eu posso pagar.

— Não é questão de dinheiro. É que...

— Por favor, Djista. Preciso disto!

— Talvez... Você tem uma cabeça boa. Já não erra mais as palavras. Muitos estrangeiros ficam anos aqui sem conseguir falar bem o deravo.

— Vocês têm uma gramática complexa, de fato.

— Nossos ancestrais vieram de uma terra muito distante, usando navios e fugindo do flagelo. Nossa língua e costumes são muito diferentes... Kedpir, Zanzídia, Halúria e até mesmo a Kunéria tem mais em comum entre si do que conosco. Os deuses, a fala, a escrita...

— O que era esse flagelo?

— Vocês falam sobre os kunérios como se fossem um povo bestial, desprovido de humanidade... Ainda que belicosos, os kunérios seriam como crianças perto do povo do flagelo. São selvagens, fortes, cruéis e famintos. Criam pessoas como escravas, fazem frequentes sacrifícios aos seus deuses do abismo e se alimentam da carne de crianças. Todos nós temos sorte de estarmos tão longe deles... Você sabe por que aqui se chama Dera? Ou por que somos chamados de povo de Dera?

— Ainda sei pouco sobre vocês.

— Foi a Rainha Dera, há mais de mil anos, que tomou a decisão de abandonar nosso antigo lar. Ela teve uma visão sobre uma terra segura, onde nosso povo poderia prosperar. Mais de cem navios partiram, apenas oito chegaram. Está tudo no livro.

— Fascinante. Adoraria poder ler essa história.

— Muito bem — ela sorriu — nós temos uma cópia do livro. Vou usá-lo para lhe ensinar.

Apesar de toda a dureza que Kurdis carregava dentro de si, conseguiu sorrir de volta.

O Bruxo e a Foice SombriaWhere stories live. Discover now