14. A fuga

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Eriana estava certa... Foi preciso um mal para destruir outro.

Kurdis caminhava sozinho pelo litoral, pela praia, por onde a maré alta encobriria seus rastros.

Muitos soldados foram testemunhas dos assassinatos que ele cometeu. Era impossível encobrir aquilo com mentiras.

A ordem vai me executar. Se não o fizer, serão os militares.

Uma ideia desesperada se formou em sua mente. É por isso que marchava dia e noite para chegar em Valta, antes mesmo que as notícias de et'Colmont lá chegassem.

Mesmo com a guerra em andamento, navios que saíam de Jaffe, e em termos recentes, passavam por Valta, realizavam comércio com reinos ou cidades-estado que estivessem fora do conflito. Do mesmo modo, navios vindos de fora, também traziam produtos valorizados em seu reino. O plano de Kurdis era entrar na encontrar a primeira embarcação de estrangeiros, comprar uma passagem e abandonar Kedpir.

A guerra agora chegará ao seu fim. Mas não poderei recorrer ao Grão-Mestre para interceder por meu pai. Maldito Carc'limar! Ele me forçou a usar a foice contra os nossos, na frente de testemunhas!

O dia estava começando. Kurdis desceu o terreno rochoso, com o mar murmurando à sua direita, e viu ao longe os primeiros sinais de Valta.

Rasgou toda sua capa em tiras e com elas enrolou a foice, junto com tufos de mato de limoeiro para fazer volume.

Não consigo entender... Por que o bruxo se entregou tão facilmente no final?

"Isto! Agora destrua esse velho corpo!" a voz esganiçada de Carc'limar ecoava em sua mente.

E aquela gargalhada? Como rir sem a cabeça presa ao corpo? Teria ele feito alguma magia dos abismos? Só posso imaginar, já que aos jovens alunos são negados quaisquer conhecimentos de magia sombria.

Solitário com seus medos e indagações, Kurdis chegou em nas proximidades de Valta.

É possível que homens a cavalo já tenham chegado antes de mim. Não posso me arriscar passar pelos portões... Talvez eu consiga contornar a pedra do farol.

Pegando um toco de madeira na praia, levado pelo mar, improvisou um cajado. Testou um feitiço simples e suspirou.

A condutividade é baixa... Mas é melhor que nada.

Prendeu a foice embrulhada em suas costas e seguiu o caminho rochoso, rente ao mar com com altas escarpas. Convocou um feitiço de levitação sobre si mesmo, mas o efeito foi pífeo.

Que porcaria!

Conseguiu apenas aliviar uns poucos quilos de seu peso. Aproveitando-se disso, seguiu mais depressa pela lateral rochosa. As ondas do mar, furiosas, se batiam nas pedras a poucos metros abaixo de seus pés e ocasionalmente, alguns respingos de água salgada molhavam suas pernas e costas. Em seu caminho, pequenos caranguejos e baratinhas do mar se escondiam dele nas brechas das pedras, à medida que avançava.

Levou quase duas horas para contornar, perto do nível do mar, o imenso rochedo sobre o qual o farol fora construído. No lado interno, finalmente encontrou uma parede menos íngreme que conseguiu escalar, e encontrou a trilha em meio à mata que descia do farol até a Torre das Gaivotas. Ali era o final da muralha ao sul de Valta. Kurdis, apesar de esfarrapado, não parecia um kune, ou mesmo qualquer estrangeiro. Então os sentinelas que estavam no alto da torre apenas acenaram para ele.

— Bom dia! — ele respondeu, percebendo sua voz rouca. Estava morto de sede.

Dali, desceu um lance grande de escadas até a parte interna da muralha e foi diretamente ao mercado velho, próximo ao cais e do portão sul.

Tinha algum dinheiro consigo e comprou frutas e uma capa cinzenta, de lona fina e barata. Pelas conversas que escutou, soube que as notícias de et'Colmont já haviam chegado a Valta.

Ao longe, na rua Jandra, no cruzamento com a avenida do canal, viu um grupo de cavaleiros chegando do sul, que pareciam estar retornando da guerra.

Eu estava certo. Muitos já devem ter retornado. Estarão procurando por mim?

Kurdis cobriu o rosto com o capuz e seguiu descendo a rua Jandra que tinha o calçamento de pedras coberto por relva e mato baixo e ficava numa das partes mais antigas da cidade.

Passou pelo cais baixo, mas ali havia apenas embarcações menores. Ele observou um local onde ele e Lorran costumavam sentar para conversar enquanto observavam a chegada do crepúsculo. Um sentimento estranho surgiu e Kurdis se viu enxugando lágrimas do rosto.

Se eu conseguir escapar... Talvez, seja a última vez que estarei pisando em meu país.

Acelerando o passo e comendo mais uma gora suculenta, chegou ao cais alto. Não foi difícil avistar embarcações com bandeiras estrangeiras. A primeira estava movimentada, fazendo descarga. Logo ele soube que não zarparia antes de três dias. A segunda, no lado esquerdo do pier seguinte, tinha bandeira vermelha com a serpe verde. Abaixo dessa uma bandeira estreita e longa com listras verdes e brancas.

Esse navio é de Dera. O mestre Lorran sempre falava sobre o pequeno reino insular e de suas viagens para lá, em sua juventude. Os feiticeiros de Dera pertenciam a outra ordem, os Shirogues, a qual admitia apenas homens que raspavam os cabelos e viviam reclusos em suas ilhotas quase sem se envolver com a política e problemas da população. A ordem Shirogue e Mahiari mantinham correspondência e ambas condenavam qualquer estudo sobre magia abissal.

— Quando zarpa? — Kurdis indagou a um marujo que estava com os cotovelos sobre a amurada um metro acima dele.

O marujo de tez morena e bigodes fartos olhou para o céu límpido.

— Com esse tempo? Acredito que hoje ainda. Terminamos de carregar de manhã, mas o capitão ainda não voltou.

— Está indo para Dera?

— Sim.

— Aceitam passageiros? Quanto é a passagem?

— Sim, vou chamar o imediato.

Quanta sorte! Um navio partindo hoje!

O imediato vestia um uniforme tingido de azul-escuro, gola alta e usava um chapéu cinzento de abas largas. Sua pele era avermelhada e sua barba grisalha era bem cortada.

— Boa tarde! — o sotaque ked dele era carregado. — A passagem custa doze serpes.

— Quanto vale isso nas moedas daqui?

— Sessenta das de prata, ou dez das de ouro.

Ainda tenho onze moedas. Vou ficar sem dinheiro em uma terra desconhecida... Mas é melhor que ser morto.

— Aqui está.

— Como se chama?

— Eu? Kurdis.

— Muito bem, rapaz! Pode subir, sairemos logo mais. Me chamo Kravel. — ele tocou o próprio ombro.

Kurdis subiu a rampa e deu uma boa olhada no convés. O navio era largo e tinha três mastros. Alguns marujos cochilavam no convés, outros jogavam dados.

— O Gustapo vai lhe mostrar a embarcação.

O marujo bigodudo sorriu, mostrando que lhe faltavam alguns dentes na boca.

— Por aqui, senhor Kurdis. Seja bem-vindo ao Rainha Lucca.

O Bruxo e a Foice SombriaWhere stories live. Discover now