23. O Ribas

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Kurdis não conseguia olhar para os ideogramas do deravo sem sentir enjoo e eventualmente, vomitar.

Nunca vou me habituar a essas viagens marítimas.

Ribas era o oficial escrivão do Rainha Crispa. Tinha cabelos e barbas bem pretas e brilhantes. Ele tinha um cheiro forte de pomadulia, uma mistura de sebo de garrompo (espécie de porco peludo e vermelho) com óleo de casca de limarina. No pote o produto não cheirava mal, mas no Ribas, exalava um fedor, pois ele aplicava aquilo diariamente nos cabelos e na barba, para deixá-los lustrosos e penteados, se misturando com dias e dias de suor.

Ele tinha um pequeno pente de ossos, já encardidos, feitos na Zanzídia. Ele falava o tempo todo de coisas sobre as quais Kurdis não tinha o menor interesse.

— O primo da minha tia fabrica a melhor pomadulia de Dera. É a mais cara também, é possível comprar com diversas fragrâncias. Como sou da família, ele me vende pela metade do preço. Se quiser, posso lhe conseguir um bom desconto.

Kurdis sorriu sem convicção para o Ribas. Estavam em sua cabine e Kurdis já não tinha mais o que vomitar há algumas horas.

O Ribas pegou sua pena, escreveu um ideograma no papel e mostrou ao mago.

— Parcela? — Kurdis arriscou.

— Veja o radical de dinheiro está acima e a faca abaixo. É desconto, ou abatimento.

Apoiou a mão esquerda sobre a barriga estufada e rabiscou outro símbolo ao lado de desconto.

— O radical à esquerda, faca à direita e acima o divisor. Este é parcela.

Um pouco de bile subiu na garganta e Kurdis engoliu de volta.

Essa lógica é infernal!

— E assim você escreve: desconto na primeira parcela. — enfiou a pena no tinteiro colado na mesa com goma. Tirou do bolso seu pente fino e ajustou a curva dos bigodes para cima.

— Veja que beleza! As serpes entrelaçadas esculpidas na cabeça do pente.

Havia uma mistura de sebo, cabelos e caspa no topo das cerdas.

Mais um pouco de bile subiu à garganta.

Absolutamente nojento!

— Uma peça... — Kurdis torceu os lábios — única.

— De fato. Eles têm artesãos incríveis na Zanzídia. Encomendei com base num simples desenho do brasão da marinha de Dera. Eu queria trabalhar na marinha, quando jovem, mas após servir por um ano, mudei de ideia. Agora vivo muito bem trabalhando na Casa Tannis.

— Não é um trabalho perigoso?

— A vida é perigosa, meu jovem. Tudo que vive morre e muitas vezes, de modo desagradável. Eu lhe digo, quero morrer num naufrágio, ou ter a garganta cortada por piratas. Meu tio Fregno tem as costas tortas, pés bolhosos e a doença do cu apimentado. Sua vida é sofrer e se lamentar. Eu espero morrer logo, antes que me venham as doenças e muitos cabelos brancos. Já nasceram alguns, mas uso a tintura de polvo-azul, a melhor de Dera. Olhe aqui — ele mostrou a lateral da cabeça — Não se vê a diferença.

Kurdis abriu a boca para dizer algo, mas o Ribas seguiu tagarelando.

— Não sou afeito a economias, sabe? Você não leva dinheiro nenhum para os campos dourados. Então para que economizar? Por isso só compro os melhores produtos, as melhores roupas. Vou apenas nos melhores restaurantes. É o mínimo que um sujeito pode fazer por si próprio após ficar comendo essa horrenda comida do navio. Aquele polvo de ontem... Estava muito borrachudo, não acha?

— Não estou conseguindo comer. Estou comendo apenas bolachas e mesmo assim...

— Não está perdendo nada, meu jovem! Deviam despedir o cozinheiro. Mas ele é primo do senhor Kravel... Sabe como são as coisas na Casa, não é mesmo? Quase todos são parentes de alguém.

Como vou aguentar esse sujeito?

— Ah, espere só até chegarmos em Topemari! A cozinha do norte da Zanzídia é sem igual neste mundo. Carne cozida na panela de chão nas folhas de frermazeira, costelão assado pincelado com banha picante... Hum, chego a sonhar com isso em Dera. Comer carne fresca em Dera é um luxo! Já na Zanzídia... Eles têm rebanhos de capricinas, mosquerós, vacarellas anãs... Criam os han'jacus de crista laranja, perdizes de papo azul e os enormes cochogós, também conhecidos como galos de perna de cavalo. Vamos comer muito bem, eu e você, meu jovem aluno!

Minha cabeça vai explodir! Esse cara não para de falar nem por um minuto!

— Você sabe que além de ensinar o deravo escrito, o senhor Tannis quer que o leve aos turrens, não é?

— Turrens?

— Nunca ouviu falar nos artífices da Zanzídia? São como os feiticeiros artífices de Kedpir, mas dizem que são os melhores de todo o mundo conhecido: também conhecidos como capa-azul. São servos dos capa-roxa, que são servos dos capa-preta. É como dizem... Você pode mudar de país, mas os feiticeiros sempre terão suas regras e roupas. Coisa perigosa a magia. Eu já vi um capa-roxa explodir no meio da rua. Matou seis pessoas e deixou outras feridas e alguns com aleijões.

Lorran terminou a vida assim... A magia que impregnava seus ossos ficou instável e explodiu.

— Eu acho que também gostaria de ser um feiticeiro, poderia morrer jovem e explodindo como uma rosa de fogo da Halúria.

— Rosa de fogo?

— Você não sabe de nada deste mundo, não é meu jovem?

O Bruxo e a Foice SombriaOnde as histórias ganham vida. Descobre agora