4. Fogo Verde

23 4 6
                                    

Kurdis estava num incêndio. Era a casa de sua família. Tudo em chamas.

— Filho... — seu pai estava em chamas, se arrastava no chão.

— Pai! Não! O que eu fiz?

Seu pai se levantou. Saltou sobre ele e envolveu seu pescoço com as mãos em chamas. E então, Kurdis percebeu que não era mais seu pai. Era o professor que ele matara.

Ele acordou e sentiu que o cheiro de fumaça era real. Suas mãos estavam agarrando a própria garganta com força. Olhou para os lados e viu que a lona de sua barraca estava iluminada por luzes esverdeadas. Sombras de homens correndo do lado de fora em meio às chamas. Os sons e gritos logo fizeram sentido. Estavam sob ataque. Vestiu seu manto e apertou o cinturão para prendê-lo, de qualquer jeito. Pegou seu cajado e saiu da barraca, aos tropeços.

— Daman! Daman! — escutou o mestre Lorran chamando por ele.

O fogo verde sobrenatural se espalhava pelo acampamento. O fogo verde agia como se tivesse vida própria saltando do topo das barracas para atingir soldados que corriam por perto. Uma vez atingidos, o fogo os consumia rapidamente em meio a seus gritos de agonia.

Kurdis bateu com seu cajado no chão para combater o incêndio. Uma onda circular de luz púrpura se espalhou pelo solo e extinguiu as chamas nas proximidades. Isso salvou algumas vidas, mas consumiu muita energia. Kurdis fraquejou em seus próximos passos, sentindo as pernas e braços arder.

Que diabos está havendo?

— Mestre Lorran! Onde o senhor está?

Tentando ver onde seu mestre estava, percebeu que o incêndio já tomara mais da metade do acampamento. Duzentas ou trezentas barracas já estavam sendo consumidas pelas chamas.

— Daman, Hester, Forrey! Por aqui! — Um facho de luz branca sinalizou o caminho. O mestre chamava todos os guldos para se juntar a ele.

Kurdis correu mancando de uma das pernas.

Malditos kunes! Isso só pode ser magia do abismo!

Kurdis já não era um garoto. Passou cinco anos estudando para ser admitido na ordem, mas mal teve tempo para gozar de sua nova posição. Apenas dois meses depois de sua ordenação, o exército kune invadiu Kedpir. E desde então, fora designado para a função de guldo. Como guldo, tinha que arriscar sua vida atuando como combatente junto às tropas de Kedpir.

Apesar do escuro daquela madrugada, o incêndio iluminava bem todo o local. Kurdis viu a silhueta escura daquela criatura antinatural, um demônio, e sentiu seu sangue gelar.

Pelo choro de Fiste!

Sempre que lia em livros e via ilustrações de tais criaturas, pensava tratar-se de lendas e exageros enterrados no passado secular. O demônio tinha quase a altura de dois homens, não tinha carne, era apenas um amontoado de ossos. O rosto era um crânio pontudo com chifres retos saindo das laterais. Das órbitas dos olhos, fendas das narinas e maxilar, emanava uma luminosidade esverdeada. Seus dentes frontais eram pontudos e os laterais, enormes presas tortas que subiam e desciam do maxilar.

O demônio de ossos cuspiu uma grossa labareda de chamas verdes sobre Lorran, mas o bruxo bateu seu cajado no chão diante de si, fazendo as chamas se dividirem e fluírem ao largo dele.

Ele não vai resistir...

Kurdis ergueu seu cajado e disparou uma bola de fogo contra o demônio. A magia o atingiu no tórax massivo, feito de centenas de ossos amontoados. O demônio cessou sua baforada de fogo verde e olhou na direção de Kurdis.

Lorran girou o seu cajado e disparou um raio que o demônio praticamente ignorou. Os sons trovejantes do avanço da cavalaria kune suprimiram a voz terrível do demônio. Ele falava um antigo idioma e Kurdis pode captar algo.

Certamente não quero ir para o abismo hoje!

Lorran recuava enquanto dizia — Daman, Forrey, precisamos juntar nossos...

O demônio tinha uma arma em mãos. Kurdis mal pode ver o que era, mas escutou o silvo de uma lâmina cortando o ar em alta velocidade. Lorran não conseguiu concluir sua sentença, pois foi atingido no peito pela lâmina.

— Mestre Lorran! — Forrey gritou. Ele era outro guldo jovem que Kurdis conhecera durante a guerra. Estava mais próximo, cerca de quatro passos atrás do mestre.

Forrey ergueu seu cajado e fez voar muitas pedras que saiam do chão para atingir o demônio. O demônio voltou-se para Forrey e avançou.

Não!

Kurdis observou, com horror nos olhos, quando o demônio separou a cabeça de Forrey de seu corpo com um golpe. O demônio segurava uma foice de lâmina longa. Era difícil de enxergar a arma.

Aquela coisa está mergulhada nas sombras! Não reflete luz alguma.

— Corra, jovem Kurdis... — a voz de Lorran veio, quase inaudível.

Kurdis voltou seu olhar de volta para o mestre. Viu que Lorran tinha um corte enorme na diagonal de seu tórax. E não viu isso graças à iluminação das chamas. O corte brilhava à medida que fagulhas luminosas jorravam do interior do bruxo. Quanto mais velho um bruxo ficava, mais energia mágica acumulava dentro de si. Lorran estava desistindo de sua vida. Desistindo de conter a magia.

Por Fiste! Ele vai explodir!

Kurdis ergueu um escudo a tempo de se defender da forte onda de choque que o arremessou para longe dali. Caiu rolando várias vezes e perdeu seu cajado. O mundo girava ao seu redor rapidamente. O chão, chamas verdes consumindo as barracas, e o céu escuro acima absorvendo todas aquelas luzes. Seu corpo batia contra o chão irregular até que sua cabeça bateu em algo duro e ele apagou.

***

Está gostando do livro?
 Comente!
Seu feedback é muito importante para mim! 

Obrigado!

O Bruxo e a Foice SombriaOnde as histórias ganham vida. Descobre agora