31. Preparativos

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Kurdis pisou no casco da pequena embarcação fazendo-a balançar. Seu sapato afundou numa poça d'água gelada que cobria o fundo do barco. Seu pé gelou e ele tateou a lateral procurando um apoio.

Maldição! Não havia melhor hora para saírem?

Estava bastante escuro na hora do morcego. O céu nublado se acendia com relâmpagos distantes e o rumorejar dos trovões se misturava aos sons da água agitada pelo vento que fazia uma centena de navios atracados chacoalhar.

Luzes distantes de vindas de poucas janelas refletiam nas águas agitadas do canal. O vento frio e úmido avisavam que a chuva não demoraria a cair.

Jargen Tannis saltou para dentro do barco, fazendo a água saltar do fundo e respingar em Kurdis. Ele agia como se fosse capaz de enxergar normalmente no quase breu.

— Tudo bem aí, amigo? — ele falou baixinho.

Agora sou seu amigo?

— Poderia estar melhor se eu ainda estivesse na cama e aquecido!

— Ra-rá! Adoro seu mau-humor! Grendir, toca o barco!

O marujo soltou as cordas e empurrou o barco com um bastão, afastando-o da doca que ficava perto da mansão de Jargen. O barco jogava um pouco e logo Kurdis resmungou, sentindo uma pontada de enjoo.

— Não sei se conseguirei fazer o que for preciso enquanto estiver vomitando.

— Tome isto. — Jargen pegou a mão de Kurdis e colocou nela um frasco de vidro fechado por uma rolha. Ao ser aberto, exalou um fedor ardido.

— Mas o que é isso? Mijo de gatigre?

— É um elixir feito pelos Shirogues. Tampe o nariz e beba de uma vez.

Kurdis obedeceu, mas tossiu horrivelmente.

— Não vomite isso! Custa caro!

Depois de alguns instantes, o enjoo se foi e tudo que restou foi um gosto amargo na boca.

Uma chuva fina e gelada começou a cair. Grendir fazia o barco avançar com remadas vigorosas, mas que tocavam a água de modo suave. O barco logo passou pela Boca entrando em águas mais agitadas.

Jargen cantarolava algo apenas com sons de sua garganta. Kurdis segurava firme nas laterais do barco e mordia os próprios dentes.

— Nós vamos para o mar aberto nesse barquinho?

— Não se preocupe, amigo. Vai dar tudo certo.

Kurdis viu uma sombra enorme adiante e engoliu em seco. Jargen assobiou de modo bastante peculiar. Outro assobio veio do rumo da sombra. Kurdis apertou os olhos e identificou a silhueta de um grande navio. Grendir seguiu remando até chegarem ao lado da nau. Ganchos presos em correntes desceram e o marujo e Jargen prenderam em argolas do pequeno esquife. Foram içados e logo puderam pisar no convés da grande embarcação.

— Bom dia, senhor Tannis! — Kurdis reconheceu a voz de Kravel.

— Bom dia, meu caro. Por favor, leve nosso amigo para a cabine para que ele possa se trocar.

— Perfeitamente, senhor!

Me livrar dessa roupa fria e molhada? Só se for agora!

— Por aqui, amigo.

Ele seguiu Kravel apesar da dificuldade de enxergar.

— Por que não acendem alguns lampiões? Essa escuridão é infernal!

— Não podemos chamar atenção, amigo. Venha!

No interior da cabine, havia algumas velas e Kurdis suspirou ao poder enxergar melhor.

Havia uma trouxa de roupas sobre a cama. Kurdis notou que havia um manto branco, uma jaqueta colorida que parecia ser da Zanzídia e um chapéu pontudo do tipo usado pelos kunérios.

— O que é isso? Uma piada de mau gosto?

— O chefe quer que vista essas roupas, coloque o chapéu e a máscara.

Kurdis o obedeceu, relutante. A máscara de porcelana esmaltada de vermelho exibia uma careta zangada.

Ao menos essas roupas estão secas.

— Que combinação ridícula!

— Eu diria que está bastante distinto, amigo.

— Amigo? Por que essa coisa de amigo?

— Estão todos proibidos de falar seu nome, aliás, deve haver poucos além de mim, na tripulação que sabem seu nome.

— E agora?

— Agora espere aqui. Eu virei avisar quando chegarmos.

Ele baixou a máscara. Havia algo mais sobre a cama, comprimido e enrolado. Kurdis deduziu corretamente.

— O cajado de ontem...

Kurdis pegou o pacote e abriu. Sentiu a madeira gasta e a textura dos entalhes ao segurá-lo. Na cabeça tinha uma pedra polida, leitosa e com veios rosados.

Eu nunca fiz isso... Magia em alto mar, não deve ser impossível. A água não é um isolante, mas conduz a magia mais devagar que a terra. Vamos ver...

Kurdis bateu o cajado no assoalho e produziu um feitiço. A energia acumulada em seus ossos fez faíscas sugerirem por entre os dedos. Ele crispou os lábios e mordeu os dentes. Os ossos doíam lá no fundo. Em seguida, jogou o cajado sobre o leito.

Vamos ver! Parece que deu certo.

Esticou a mão e o cajado voou sozinho de volta.

— O gancho está perfeito. Menos um preparativo.

O navio balançava, as madeiras rangiam, mas pela primeira vez, Kurdis estava livre dos enjoos. Ele se sentou na cama pregada no chão e então se deitou.

O que será que pretendem? Certamente que eu faça magia e que não seja reconhecido. E essa roupa? Máscara e chapéu? Na certa querem que eu cause uma impressão. Não adianta ficar imaginando coisas. É melhor tirar um cochilo, afinal, o sol ainda está por vir.

O Bruxo e a Foice SombriaWhere stories live. Discover now