59. Preparativos

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Cerca de dois meses depois da queda de Tédris, Kurdis retornava à Floresta de Hasham. Um sem-numero de humanos escravizados pelas mães noruk trabalhavam derrubando árvores usadas para criação de máquinas de guerra. Com a capital eliminada, o reino estava a beira do caos. Os ataques do exército noruk começaram em Guin'uji, nas montanhas, e depois desceram pelo vale, arrebatando diversos vilarejos e pequenas cidades.

Jaffe e Valta, eram as duas últimas metrópoles que resistiam. Os Maihari conseguiram estabelecer mecanismos de defesa em ambas que impedia os dragões de fazer seus crantens. Mas o restante do reino, estava completamente arruinado. Sem conseguir o apoio dos dragões para arrasar essas últimas cidades, o exército noruk se reunia para invadir Jaffe.

Kurdis e a xamã noruk observaram a imensa movimentação. Diversas capatazes noruks carregando chicotes de espinhos açoitavam os escravos para que trabalhassem mais depressa. Sem conversar, seguiram até a barraca de Kullat. O interior estava aquecido e a luz do sol conseguia penetrar pela lona de couro, deixando a iluminação ali dentro agradável.

— Essa será uma batalha difícil. Até então tudo foi fácil demais. — Kurdis comentou, encostando o seu cajado no cabide em que Kullat pendurava seus mantos, colares e outras peças que usava para seus rituais. Ele abaixou o capuz do manto escuro que adquiriu durante o saque a Guin'uji. Agora voltara a vestir roupas descentes, o que não fazia há muito tempo. Sentou-se e ficou observando os movimentos sofridos da noruk, cuja doença, que provocava dor nos ossos, vinha se agravando.

Kullat gemeu e esforçou-se para sentar na banqueta de madeira. Sua cabeça ficava curvada para baixo, sob a volumosa corcunda. Ela agitou as brasas do fogo de chão com um atiçador. Seus olhos pequenos e escuros refletiam a luz do braseiro e pareciam perturbados. Mantendo o olhar fixo nas brasas, falou com sua voz grave.

— Eu sonhei com a batalha, Daman. Go'ram vestia uma armadura feita de pedaços de norukos e jarukos. As cabeças presas ao seu corpo por vergalhões ainda gritavam em desespero e agonia. Ele brandia uma grande espada escura e gargalhava enquanto matava jarukos e norukos indistintamente. O sanguinolento ficará certamente satisfeito com a carnificina.

— Que pesadelo!

— O pior foi quando ele me olhou nos olhos e correu em minha direção. Acordei sentindo o aço de sua espada esmagando meus velhos ossos!

— A batalha será difícil, mas venceremos.

— Se ô-masu assim pensa, tenho fé que assim será. Mas não sei por quanto mais tempo esses meus velhos ossos irão me conduzir.

— Por tempo suficiente para agradar Fre'garzam. Nosso apoio na próxima batalha será importante. Tenho certeza que as forças de Jaffe reunirão uma boa quantidade de guldos. Como não temos ninguém além de nós para contrapor a magia deles, precisaremos contar com a estratégia de Mãe Gtu. As mulheres e crianças humanas, no papel de escudos, certamente nos darão uma boa vantagem.

— E quanto o espadim de Mãe Gtu? Poderá ser um trunfo na batalha?

— Eu a vi empunhar a lâmina escura que pilhou em Guin'uji. Não me parece que ela tenha se conectado a seus poderes. Consigo ver que há magia nela, mas Gtu parece incapaz de acessá-la.

— É uma pena... — Kullat contraiu o rosto, sentindo as costas fisgando.

Kurdis usou os dedos para intensificar as tímidas chamas do fogo de chão.

— Andei interrogando alguns soldados que capturamos. Descobri que parte da família real conseguiu escapar de Tédris e se estabeleceu em Jaffe.

Kurdis encarou o fogo sentindo o estômago revolto. Franziu o cenho irritado.

Se aquele maldito tiver escapado!

Kullat observou a expressão do humano e compreendeu sua situação. Deu um risinho e disse:

— A possibilidade de sua vingança estar incompleta, ainda o incomoda...

— Ria o quanto quiser! Quando Jaffe cair, irei me certificar que Jorem, se estiver mesmo vivo, não escape com vida!

— Antes disso, melhor trazer a mente para a batalha. Mãe Gtu irá ordenar a marcha no fim deste dia.

Kurdis pressionou os lábios, ficou de pé e apanhou seu cajado.

— Eu vou para minha tenda. Preciso me preparar.

Kullat inclinou-se de lado para poder erguer o olhar e ver o rosto do humano.

— Que Frey'Garra'Zam nos guie, ô-masu!

Kurdis parou um instante, admirando a feiura da velha noruk. Aquele sorriso horroroso da boca semi desdentada, dentes sujos e tortos, a pele cinzenta, enrugada.

Estou certo que ele irá se deleitar com as pilhas de cadáveres que essa batalha irá produzir.

— Só estamos aqui por que ele assim deseja... — Kurdis finalmente retrucou, puxou a lona e saiu da tenda.

Eu devia ter enfrentado Arjune'zur! Devia estar no cranten de Tédris. Devia ter me certificado...

A atenção de Kurdis voltou-se para um jovem que deixou cair a tora de madeira que carregava com um companheiro. Estava sem camisa, as calças em frangalhos, imundas, com manchas de sangue. Vergões vermelhos e sangue coagulado nas costas e braços.

— Por favor, misericórdia! Não aguento! Argh! Argh!

A imensa capataz noruk brandiu o chicote espinhoso contra seus ombros, costas, braços. Filetes de sangue escorreram generosos por seu corpo vacilante.

— Knuk, gorb-jaruko!

Esse rapaz não vai conseguir sobreviver. Pobre alma. Melhor aliviar seu sofrimento.

Kurdis se aproximou e a capataz imediatamente parou de açoitar o rapaz para fazer uma vênia.

— Grande ô-masu!

Kurdis ignorou-a e bateu com seu cajado no chão. O som gutural que produziu para convocar depressa o feitiço destacou-se no silêncio que se espalhou com sua aproximação.

— Misericór... aaaargh!

O rapaz foi atingido com um raio verde que o fez se contrair em espasmos por uns instantes. Em seguida, o corpo relaxou e caiu de lado, morto, liberto da dor e do sofrimento.

Finalmente Kurdis se dirigiu à capataz e disse no idioma dos noruks:

— Não perca tempo açoitando mão de obra inútil! Ao trabalho!

O Bruxo e a Foice SombriaWhere stories live. Discover now