58. O Cranten

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Após dois anos da incursão de Kurdis a Tédris, finalmente chegava o momento de sua vingança. Foram dois anos de muito trabalho, por um lado, organizando e reunindo as diversas tribos de noruks para formar um exército, e de outro, realizando dezenas de jornadas mentais para despertar a racionalidade superior dos jovens dragões que se espalhavam por toda região erma e montanhosa a norte de Kedpir.

Dezenas de dragões voavam em formação para espalhar fogo, morte e destruição sobre Tédris. Kurdis não estava com eles, mas podia vê-los se aproximando da capital. Ele gritava, descontrolado, e em sua ira estava disposto a enfrentar o grande dragão, Arjune'zur. Ergueu a foice em riste pronto para atacá-lo.

— Saia da minha frente! Não me diga o que fazer! Eu quero a minha vingança! Eu quero ver Jorem e Murdis Hûr pagarem por seus crimes!

Arjune'zur lançou uma baforada de fumaça quente que lambeu os cabelos brancos de Kurdis para o alto.

— Nada irá restar daquela cidade, nem mesmo você, Daman, se estiver lá!

Kurdis tossiu e cuspiu, os olhos lacrimejando.

— Eu preciso estar lá!

Os olhos de Arjune'zur faiscaram e ele inspirou alimentando a fornalha que tinha dentro de si. A luz candente alaranjada surgiu no fundo de sua garganta. Ele poderia incinerar Daman com uma única baforada, mas apenas disse:

— Daqui poderá ver muito bem! Agora abaixe esse unha de demônio e acalme-se.

Kurdis sentiu o hálito quente do dragão em sua face, como se estivesse retirando pães de um forno. Naquele instante, as pequenas chamas, distantes, chamaram sua atenção. Viu um primeiro grupo de dragões descer sobre Tédris lançando fogo sobre suas construções. Dali, pareciam insetos pretos. E logo, viu fogo e fumaça se alastrando. Aquela visão foi acalmando seu âmago sedento de vingança. Finalmente aceitou apenas observar e imaginar a derrocada de Jorem e Murdis.

— Já começou... — Arjune'zur virou-se para ver o espetáculo. — Ah, há tanto tempo não se vê um cranten nessas terras.

— Um o quê? — Kurdis tinha os olhos fixos na dança mortal dos dragões ao redor da colina de Tédris.

Cranten. Um ataque de um bando de dragões com finalidade de arrasar por completo uma cidade. Eu fiz parte do último cranten que de que se teve notícia, quando era apenas um filhote mal saído do ninho. Foi uma das últimas batalhas antes que Leviamut fosse derrotado. Um pouco antes do fim da era dos dragões...

— Por que você não se junta a eles?

— Esse cranten não me pertence, mas sim a Hymur e Jadrite. São eles que devem liderar essa nova geração de jovens scotenks.

— Sabe, Glauvorax estava certo. Ele profetizou o que vemos aqui hoje.

— Sua profecia dizia que você colaboraria para acontecer um cranten?

— Não eram essas as palavras. Ele disse que as pessoas iriam sofrer ao meu redor.

— Que profecia mais tola! Óbvio que isso iria acontecer, as pessoas sempre estão sofrendo...

— Não é bem esse o sentido que captei. Ele também falou sobre Fre'garzam. E nisso, ele foi bastante preciso. Foi Fre'garzam que me salvou de ter meu corpo usurpado pelos Wux'shien. Fre'garzam também estava na profecia dos noruks. Eu me debati contra o destino, por um bom tempo, mas hoje aceitei. Me sinto muito contemplado pela mão invisível do destino.

— Sim, os humanos são conduzidos por forças invisíveis que não compreendem. São poucos os que conseguem ver além...

Kurdis ficou observando o fogo se espalhar, mais e mais na capital. Fumaça escura subindo aos céus formando uma imensa nuvem. Logo a fumaça iria bloquear a luz do sol.

— Sinceramente espero que Murdis, Jorem e toda aquela corja da nobreza sucumbam.

— Eles sucumbirão, cedo ou tarde. E quanto as mães Noruk?

— Elas me aguardam nas montanhas. O exército está pronto para marchar. Nós colocaremos um fim ao reino de Kedpir. E quando terminarmos, o próximo reino a cair será a Kunéria.

— Isso também foi profetizado?

— Está interessado em profecias, agora, Arjune'zur?

— A única profecia que me interessa é reconstruir a glória dracônica. Posso lhe oferecer uma última carona...

— Última?

— Deixarei as coisas aqui sob os chifres de Hymur e Jadrite. Partirei para a Zanzídia... Quero muito saber como vivem os dragões no sul. Quero lhes contar sobre o cranten de Tédris. E quero muito saber o que estarão dispostos a fazer.

— Entendo... Talvez fique desapontado...

— Por que diz isso, Daman?

— Não sei se os dragões da Zanzídia irão compartilhar dessa sua visão. Eles cuidam dos humanos o mesmo cuidado que um pastor cuida de seu gado. Fico imaginando como irão reagir às novas que irá lhes levar.

— E o que fazem os pastores humanos com seu rebanho, Le'Daman? Não abatem o gado para comer de sua carne, fazer botas e chapéus com seu couro?

— Suponho que esteja certo nisto, Arjune'zur.

— Eu já vi o suficiente. Minha hora de ir chegou. E quanto a você? Ficará para examinar o que restará de Tédris, amanhã? Ou quer que o leve a algum lugar?

— Eu não ficarei. Se puder me levar até o acampamento das tribos unidas... Tenho trabalho para fazer junto aos noruks.

— Muito bem, suba.

Kurdis subiu nas costas do dragão que precisou agitar as asas com muito vigor até subir o suficiente para se aproveitar das correntes de ar.

— Segure-se. Antes de irmos para as montanhas, vamos olhar o cranten mais de perto.

Kurdis fez exercícios de respiração que ajudavam a evitar o enjoo. Não eram plenamente efetivos, mas tornavam as jornadas aéreas mais toleráveis.

Arjune'zur chegou nas proximidades de Tédris em pouco tempo. O vento soprava a fumaça para o norte, de modo que se aproximou da porção sul da cidade. Ali do alto, a visão era semelhante a um formigueiro que fora pisoteado. Milhares de pessoas saíam da periferia da cidade, em grupos, em filas, e também, espalhados, individualmente.

O dragão planava suavemente sobre as generosas correntes de ar quente que vinham da cidade em chamas. Apesar do caos de centenas de metros abaixo, era possível experimentar quietude ali.

— Não lhe pesa a consciência a morte de tantos dos seus, Daman?

— A morte é apenas mais uma etapa para eles. Eu deixei a morte de meu pai me assombrar por um tempo, mas finalmente entendi que o libertei de seu corpo. Hoje o que ocorre ali não é mais nada que isso, uma libertação. E isto, não me faz pesar os ombros.

Apesar dos fugitivos que escapavam pelas periferias da cidade, muitos sucumbiam no interior. O próprio Castelo Or'Ked estava em chamas àquela altura. Na rua abaixo, todo o quarteirão onde ficava a mansão de Murdis Hûr estava arrasada. Kurdis observou aquilo e pensou.

Será que Murdis e Jorem já queimaram? Ou estão entre os fugitivos? Não importa! Logo continuaremos o trabalho. O que os dragões não puderem queimar, meu exército de noruks vai destruir. Fre'garzam ficará satisfeito.

O Bruxo e a Foice SombriaWhere stories live. Discover now