52. Mãe Kullat

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Era um tarde fria quando Mãe Tu'ola retornou trazendo Mãe Kullat e mais algumas dúzias de noruks. Kurdis observou-a de longe e seus olhares se cruzaram.

São olhos de uma pessoa sábia...

Kullat era idosa, corcunda e caminhava se apoiando num bastão de madeira nodoso e retorcido. Usava um capuz surrado e um manto marrom desbotado. Ela se sentou o toco mais alto do descampado no meio da aldeia. Os machos que a acompanhavam colocaram um grande pote de cerâmica a seus pés. Ela anunciou que só conversaria com o masu no dia seguinte e convocou o nadak. Mutu explicou a Kurdis a situação e o convidou para a noite de celebração.

— Mãe Kullat conversar amanhã. Hoje noite muk'nadak! Vem pro muk-muk, Keds-Frey-Frey!

Kullat abriu o pote de cerâmica, ateou fogo no líquido que estava dentro e depois, voltou a tampar o pote. Dali subiu uma fumaça esbranquiçada. O vapor espalhou-se de forma controlada, expandindo-se como um grupo de serpentes por toda praça da aldeia.

— Minim buk, nagru! — sua voz era forte e grave.

Ela usou magia! Interessante!

Os noruks machos se aproximaram do pote de nagru, uma forte aguardente adocicada. A bebida foi repartida com todos. Mutu trouxe uma concha de bloavo cheia de nagru e ofereceu ao visitante. Os bloavos eram grandes moluscos pretos comuns na região e Kurdis já os havia comido assados, fritos e até mesmo preparados no vapor com folhas de xawala azeda.

Kurdis recebera um local de destaque, como os das outras fêmeas. Um toco esculpido para se sentar. Não chegava a ser uma cadeira, mas era melhor que ficar no chão como os machos. Uma trupe de músicos começou a tocar e os noruks se puseram a dançar. Dali ele apreciava a música ritmada e observou que nenhuma fêmea cantava ou dançava.

Os noruks machos eram músicos hábeis e combinavam diversos tipos de tambores e estranhos instrumentos de percussão com pífaros. Eles também cantavam em coro com suas vozes arranhadas.

— Venha, Kuds-Frey-Frey! — Mutu puxou-o pela mão. Kurdis quase tropeçou, sem controle das pernas.

Kurdis foi levado para o meio da roda de dança, já completamente bêbado depois de apenas uma concha de nagru. Festejou e dançou freneticamente até cair desmaiado.

No dia seguinte, acordou e rolou fazendo caretas. Não conseguia se levantar. Estava em meio às peles malcheirosas que os noruks usavam para dormir. Usava apenas suas ceroulas.

Mas que dor de cabeça!

Olhou para os braços e viu que estavam cobertos de tinta. Havia padrões e símbolos desenhados com pigmentos brancos, pretos e vermelhos. Olhou para o próprio peito e para as pernas, a situação era a mesma.

Tinta? Não me lembro disso.

Um súbito enjoo fez uma bile horrível subir por sua garganta. Teve que segurar enquanto se arrastava para fora da tenda. Vomitou tudo em instantes. Pouco tempo depois, o enjoo cedeu e conseguiu ficar de pé. A cabeça ainda latejava, mas era uma situação tolerável.

— Acordô, acordô! — Mutu veio trazendo uma concha cheia de água. — Bebe, sim, Keds?

Kurdis aceitou e bebeu avidamente. A garganta estava seca e, além disso, precisava lavar aquele gosto horrível de sua boca.

Mutu estava agitado. Saltava de um pé no outro, como se o chão estivesse em brasas.

— Vem, vem, Keds-Frey-Frey! Mãe Kullat conversar agora!

— Que agitação é essa, criatura? Por acaso precisa usar o banheiro?

— Bananeiro?

— Ah, esquece! Onde ela está?

— Vem, vem! Vem, vem!

Kurdis seguiu o pequeno noruk observando sua agitação. Além de saltitar, as mãos tremiam freneticamente.

Será que ele está bêbado?

Havia uma nova tenda armada na parte mais alta da aldeia, na sombra de uma das maiores árvores que cresciam no bosque. Um fio de fumaça branca escapava pela pequena chaminé de tecido, no topo da lona. Mutu puxou uma pele grossa que funcionava como porta de entrada e Kurdis viu que o interior da barraca estava um pouco escuro. Ele curvou-se ligeiramente para entrar e viu Mãe Kullat sentada num toco, atrás de um braseiro. Um par de hastes de madeira apoiavam uma vara na qual uma panela estava pendurada por um gancho. Um cheiro fortíssimo fez o nariz do mago arder e seus olhos lacrimejaram.

Mas o que é isso?

A voz poderosa da anciã projetou-se da ponta de seu focinho — Sente-se ô-masu!

As bocas dos noruks macho eram bem parecidas com a dos humanos, mas as fêmeas, tinham lábios largos e peludos que se uniam às narinas protuberantes. Os machos tinham um semblante feioso, mas, de algum modo, amigável. Já as fêmeas não atraíam simpatia alguma.

Kurdis se sentou e limpou as lágrimas com as mangas do seu manto.

— O nagru funcionou perfeitamente no ô-masu. — Kullat falava o ked quase perfeitamente, apenas com um leve sotaque.

— Funcionou? E o que isto quer dizer?

— Ô-masu não se lembra, não é mesmo?

— Lembrar?

— De como Fre'garzam falou pelos seus lábios. Ele falou sim, em nosso idioma.

Eu não falei nada. Eu apenas comecei a dançar... E depois...

Kurdis interrompeu seus pensamentos, olhando para a mão. Ainda parecia estranha. Ele indagou: — É mesmo? E o que eu, ou ele disse?

— Disse que o ô-masu viu suas chamas.

— Só isso?

A velha esfregou as mãos com um punhado de cinzas que tirou de um pote. — Sim. Mas isso muda tudo! É a confirmação de nossa antiga profecia.

— Pode me esclarecer, Mãe Kullat... O que diz a profecia?

Ela apertou os olhinhos e suspirou. — Diz que o ô-masu, aquele que viu as chamas de Fre'garzam, portador do fogo verde, viria para anunciar a grande reunião das tribos. Diz que o ô-masu vai mostrar o caminho para restaurar a antiga glória do povo norurk. Que só através dele, a vingança de Fre'garzam irá recair sobre os jarukos.

Kurdis ergueu as sobrancelhas. Aquilo era surpreendente! — Mesmo eu sendo um jaruk? Um humano? Vocês estariam dispostos a me seguir?

— A mim pouco importa que você seja um jaruk, poderia ser até mesmo um morsolo... A mim importa apenas cumprir a vontade de Fre'garzam!

— Certo. Se é assim. Eu tenho uma primeira tarefa para os norukos! Quero que me ajudem a matar os jarukos que vem até as montanhas para caçar dragões.

Kullat riu com satisfação e bateu as mãos fazendo as cinzas se espalharem. — Esplêndido, grande ô-masu! Nada me faria mais feliz!

O Bruxo e a Foice SombriaWhere stories live. Discover now