24. Subindo

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Kurdis subiu ao convés do Rainha Crispa. Entraram numa calmaria e o Ribas insistiu para ele subir.

— Veja, meu jovem, não é impressionante?

Estavam perto de Topemari. O imenso rochedo avermelhado tinha em seu topo a cabeça de um dragão esculpido.

— É a cidade mais estranha que verá em toda sua vida! Dizem que a cabeça do dragão foi esculpida há milênios, no tempo que toda humanidade servia ao Deus-dragão!

Topemari era uma cidade vertical. Na base, o porto. A partir dali, o rochedo colossal imenso fora esculpido com escadarias e plataformas nas quais ficavam os diversos bairros. No topo, ficava a cabeça do dragão.

— O que é aquela coisa se movendo? — Kurdis apontou para um cilindro de pedra que subia lentamente em um sulco no rochedo, indo da base até o topo.

— É um engenho feito pelos turrens. Chamam de Tol'takak, a pedra viva. É usado para transportar cargas pesadas entre os níveis da cidade. Nós vamos ficar hospedados ali, ao lado daquela árvore com floração amarela. — apontou para uma construção de pedras no limite da terceira plataforma. Uma construção que pegue o sol da manhã é essencial para evitar o calor excessivo.

— Parece bem alto...

— Sem dúvida! Assim como o preço... Três meses na hospedaria do Mar Perfeito? O senhor Jargen está mesmo investindo em você, meu jovem.

Essa sensação de ser uma mercadoria é um pouco desagradável, mas olhe só para esse lugar? É incrível! Por outro lado, temo que a questão dos turrens possa ser incomoda.

Kurdis se recordou de uma conversa com o mestre Lorran, há muitos anos.

— Existem feiticeiros em outros reinos? Eles também fazem parte de nossa ordem?

— Sim, mas cada reino tem suas próprias ordens. Temos boas relações com Dera, mas relações difíceis com a Kunéria e Zanzídia.

— Por que, mestre?

— São muitas razões... Desde questões políticas até mesmo devido a divergências que temos quanto ao uso e regulação da magia. A Kunéria tem usado magia sombria de uns anos para cá e julgamos que isso possa ser muito perigoso. Além disso, nossos reinos têm um histórico de conflitos políticos e militares.

— Já ouvi muitas histórias... Como a da guerra de nove anos.

— A paz está durando, desta vez, mas temo por uma nova guerra... Espero estar errado.

— E os feiticeiros da Zanzídia? Não temos relações com o reino, certo?

— Algum comércio, mas fraco. O problema dos feiticeiros da Zanzídia é que lá a política, religião e magia se misturam. O rei deles é um feiticeiro, Hoffneg Capa-Rubra. Não faz muitos anos que Guilrand, um estimado irmão de nossa ordem, tentou estabelecer uma embaixada para os Mahiari na Zanzídia. As coisas deram errado e ele acabou preso. Não se tem notícias dele, alguns acreditam que ele pode ter sido morto.

Os gritos da tripulação para preparar a atracação desviaram Kurdis de suas memórias. O navio se aproximou do atracadouro.

É um porto bem pequeno se comprado a Dera. Esquisito! Os locais usam roupas tão coloridas!

— Ribas, o rei da Zanzídia ainda é o feiticeiro Hoffneg?

— É... o Mão de Sangue. Felizmente, não está por perto. Vive na capital, mais ao sul. Falando nele, é importante que você não faça nenhuma... Digo nenhum... Bem... Precisamos ser discretos, não chamar a atenção, se é que me entende. Se alguém perguntar, você nasceu em Kedpir, mas já vive e trabalha para a Casa Tannis há muito tempo. Nós temos mais prestígio aqui que nossa realeza. O comércio é benéfico para nossos reinos e isso é tudo que importa, do ponto de vista de nossas relações.

Os oficiais e tripulação do Rainha Crispa se puseram a trabalhar para levar os produtos encomendados e também para fazer novas negociações.

Em terra, ainda nauseado, Kurdis viu o Ribas se despedir do capitão e outros membros da tripulação.

— Está com as pernas preparadas? — Ribas deu um meio sorriso para Kurdis.

O mago encolheu os ombros e, sem muita bagagem, se puseram a subir escadarias que não pareciam ter fim. As pernas logo ficaram doloridas. As mãos de Kurdis se coçavam para fazer uma magia de redução de peso, mas tinha que se segurar para não chamar atenção.

As ruas da cidade eram largas em geral, mas bem estreitas em alguns trechos. Algumas escadarias ficavam à beira de verdadeiros abismos com apenas pedras e mar abaixo.

— Quanto falta?

— Apenas mais duas plataformas. Pode não parecer, mas estou muito bem de saúde! Minhas pernas são muito fortes. Uma vez, subi até o último nível, perto da cabeça do dragão. É claro que precisei deixar os pés de molho em água quente naquela noite. E sabe...

Kurdis parou de prestar atenção no Ribas e pegou um graveto seco que encontrou ao lado de alguns arbustos que enfeitavam a lateral da rua no lado da encosta. Segurou-o com firmeza e se permitiu dar alguns passos de olhos fechados, apenas acompanhando a tagarelice do Ribas.

Este vai servir.

Kurdis olhou ao redor.

Não vejo ninguém que se pareça um feiticeiro. Bem, lá vai!

Trabalhar na estiva tinha o deixado viciado em usar a magia para amenizar seu esforço físico. Tinha tanta prática que conseguia convocar o feitiço sem dizer nenhuma palavra e nem mesmo usava o gestual típico.

— Ah, bem melhor!

— O que disse, meu jovem? Eu não penso que o ócio seja melhor que o trabalho duro!

— Me desculpe... Não foi isso que quis dizer.

— Bem... — Ribas parou um instante para limpar o suor do rosto e do pescoço com um lenço. — Já estamos quase chegando!

Quando viraram a esquina, foram interpelados um homem alto, de nariz empinado, gibão cinzento, longas botas de couro preto e um capuz roxo sobre a cabeça.

Kurdis não entendeu uma só palavra do que ele disse, mas o homem não parecia amigável.

O Ribas se curvou e respondeu em zanzidiano. A única coisa que ele entendeu foi a palavra Kurdis.

— O que está havendo? Algum problema?

O homem barbudo com olhos cor de gelo encarou Kurdis. Ele sentiu algo frio em sua mente. E então a voz do mago invadiu seus ouvidos, ainda que sua boca estivesse parada.

"Não gostamos de kedis, muito menos feiticeiros kedis... Não sei quais são seus negócios aqui, mas se não quiser problemas, guarde sua magia apenas para si mesmo".

— Claro! Quero dizer... senhor... Como devo chamá-lo?

"Glauvorax, segundo guardião de Topemari, não foi um prazer".

O mago fez um pequeno aceno para o Ribas e seguiu seu caminho, olhando para todos os passantes com seu olhar esnobe.

— O que aconteceu? Não sei o que foi, mas foi super esquisito o jeito que vocês dois ficaram se olhando e depois, aquela conversa de um lado só...

— Não se preocupe, senhor Ribas, muitas vezes os feiticeiros se reconhecem, é só isso. Ele usou um feitiço para falar sem fazer sons... Foi isso o que o senhor viu.

Ribas tirou seu pente de ossos do bolso e ajeitou os cabelos emplastados de sebo.

— Confesso que fiquei com medo. Achei que ele ia explodir você, ou algo assim. Mas vá lá! Ao menos esse tempo parado serviu de descanso, vamos meu jovem, resta apenas mais um lance de escadas.

— Vamos...

— Ah, tanto sol vai fazer mal para os meus cabelos.

Kurdis suspirou resignado e continuou subindo enquanto o Ribas falava sobre mais coisas sem sentido, ou nada interessantes.

O Bruxo e a Foice SombriaWhere stories live. Discover now