29. Arcanos

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Kurdis começava a duvidar que haveria algum trabalho especial a ser feito em prol da Casa Tannis. Já vinha trabalhando no setor de tradução há dois meses, e o trabalho era maçante, a maior parte do tempo. Um ou outro volume trazia algum assunto de interesse. Em pouco tempo, habituou-se a usar o dicionário de ideogramas do deravo. Isso facilitava muito seu trabalho, assim que já sabia o que queria escrever.

Fora a falação de Gando no primeiro dia, passavam quase o tempo todo em silêncio. Havia dois colegas do setor que ele sequer sabia o som da voz.

Quanto mais quieto melhor. Menos perguntas, menor o risco de aparecer algo indesejado sobre meu passado.

Trabalhar numa biblioteca trazia oportunidades. A conversa com Glauvorax sobre a profecia rondava sua mente. Ele dissera que o destino do rapaz estava ligado a um Arcano das sombras. Kurdis não se lembrava de ter ouvido falar em Arcanos na escola dos Mahiari, mas talvez encontrasse algum texto vindo da Zanzídia.

— Roscum, você já traduziu algum texto zanzidiano que tratava de Arcanos?

O homem de tez escura, que vinha do sul da Zanzídia levantou a cabeça.

— Sim, alguns.

— Poderia me dizer os títulos, ou onde encontrar?

— Demônios e deuses do Império Lacremeriano.

— Obrigado. Você nasceu na Zanzídia, não é?

— Vamos! — interrompeu o velho Gando. — Mais trabalho e menos conversa. Já lhe expliquei isso...

— Desculpe, senhor, me distraí.

— Recebemos para traduzir. Quantas vezes tenho que repetir?

Esse Gando é tão chato quanto Turzo! Ao menos eu ria às vezes naquele trabalho.

Kurdis tomou nota do título informado por Roscum e passou no setor de indexação depois do horário. Encontrou o texto e fez um empréstimo dizendo que era para ajudar numa tradução.

Demônios e deuses do Império Lacremeriano era um livro de comentários a trechos de outros livros antigos e fragmentos. Foi escrito por um zanzidiano chamado Wendix de Veddena, há cerca de trezentos anos.

"O Deus-dragão, Leviamut, a pequena estrela de fogo, é considerado por muitos autores, como Ruzier e Traciule, como um Arcano. Mas Feud'cazub, sustenta que o Arcano Leviamut enviou à terra sua avaetera na forma de um ovo fecundo que nasceu na erupção do Monte Dracumu. Sua força logo se espalhou expulsando as sombras da Vortarumbia, mas os cinco Arcanos sombrios, expulsos pela luz e fogo de Leviamut, juraram vingança. Feud'cazub também diz que Fre'garzam, senhor dos vermes e da decomposição, depois que foi devorado pelo dragão, entrou para as profundezas e jurou emergir e comandar homens, nou'rukos e dragões. A corrupção de Fre'garzam, Goltram e dos demais Arcanos sombrios, começou de fato pelos homens que se viram oprimidos pelas garras de aço do regime de Leviamut. Já Ruzier diz que Fre'garzam não era um Arcano, mas sim, o alto sacerdote dos Kurotanes que desceu ao Abismo e ligou sua alma ao Arcano Goltram, o sanguinário, e não ficando mais nem vivo, nem morto. Os Kurotanes, portadores das armas do breu, usurparam o templo dos magiares e derrubaram o conselho luminoso. Após assumir o controle dos magiares, emprenderam a escuro'jirra, a guerra sombria, para realizar a vingança de Goltram contra Leviamut. Já Traciule defende que Lemiamut enlouqueceu, que estorvava a humanidade e que esta tinha o direito de lutar para se libertar de sua tirania. Tanto que o Arcano Goltram, o sanguinário, e o Arcano da luz, Haymih, a Espada da Justiça, apoiaram a Revolução de Topemari. Leviamut pagou o tributo de sangue a Goltram quando a Espada da Justiça fez rolar sua cabeça. Os textos mais recentes de Ulosir, Dangino e Albertina de Gram, reduzem a questão dos Arcanos a mera alegoria fantasiosa, na qual feiticeiros tiveram seus feitos exagerados e as atrocidades cometidas foram justificadas por embate entre deuses e demônios que nunca pisaram na terra. Sustenta que videntes e profetas, em quem não se pode confiar como fonte histórica, deixaram textos enganosos e que apenas estimulam a perpetuação de crendices vazias".

Não sei em quem acreditar. Nos antigos e o aspecto transcende dessas forças, deuses e demônios, ou nos modernos, que dizem que tudo não passa de exageros fantasiosos.

A sineta soou no piso inferior. A biblioteca estava fechando suas portas.

Já é tão tarde?

Olhou a sua volta. Não havia mais ninguém. Ficou tão entretido com o texto que perdeu a noção do tempo.

— Ei, esperem! — Kurdis gritou na direção das escadas. — Estou descendo.

O piso inferior já estava escuro.

— Ande logo! Estamos fechando. — veio a resposta.

Kurdis não sabia o nome do homem que guardava o portão, mas já havia trocado palavras com ele de outras vezes. Era um homem grisalho com uma pança protuberante e um espadim curto preso no cinto.

— Muito trabalho hoje, senhor?

— O tempo voa, não é?

— Voa quando estou dormindo, isso sim.

Kurdis riu daquilo e observou a rua escura, com pouco movimento. Ele normalmente ia para a hospedaria ainda com a luz do sol. Desatou o bastão de caminhar da bolsa e desceu os degraus. Aquele bastão canalizava energia suficiente para que se sentisse seguro.

— Até amanhã, senhor!

Kurdis acenou para o homem e desceu a rua. O vento soprou arrastando folhas secas e aquele som o fez se lembrar da gargalhada raspada que ouviu no ar depois que matou o feiticeiro kune Carc'limar. Os pelos de do braço de Kurdis se eriçaram.

Fre'garzam, senhor dos vermes? Ou um sacerdote amaldiçoado pelo toque do abismo? São apenas lendas... Mitos. Se fossem reais, os Mahiari estudariam o assunto, tenho certeza.

Entrou na hospedaria e suspirou aliviado. Um pouco mais, e teria ficado de fora. Escutou uma conversa, vozes familiares. E lá estavam Gustapo e Dona Gianú num bate-papo animado.

— Hidenar! Pela Rainha Dera! Achei que não viria!

Kurdis acenou para ambos a título de cumprimento.

— O que o traz aqui?

— Assuntos da casa, venha comigo.

— Mas eu nem jantei.

— Então, melhor ainda, iremos a um jantar, venha.

— E quanto ao horário de retorno? Dona Gianú...

— Não se preocupe, já expliquei tudo para ela. Com sorte você retornará em alguns dias?

— Dias? E Gando...

— Ele será avisado. Não se preocupe, senhor Hidenar, a Casa Tannis sempre cuida dos detalhes.

E então, aquela convocação inesperada tirou da mente de Kurdis suas preocupações com Arcanos, profecias e maldições. Iniciou o dia duvidando que haveria algo a fazer, e no fim, descobriu que estava enganado.

O Bruxo e a Foice SombriaWhere stories live. Discover now