ATO 6

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Não tenha medo de nada pequena criança. O que você está sofrendo agora, será muito pior no futuro. Então aproveite o agora, e sofra menos.

     Já tive um amor, já tive uma família, já tive liberdade

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     Já tive um amor, já tive uma família, já tive liberdade.

     A chuva estava forte. Me escondi debaixo da cama. Me sentia protegida ali. Mamãe dizia que tempestades não são tão assustadoras quanto parecem. Ao olhamos para o céu, com uma nova perspectiva, vemos nada mais que as lagrimas de Deus caindo sobre a terra, sem intenção de causar o mal. Alimentava a natureza e seus devaneios. Desde então, passei a ver tempestades com mais carinho.

     A única parte que eu não compreendia, era: Por que Deus sempre chorava?

     Naquela noite, eu ainda preferia ficar debaixo da cama. Os barulhos dos trovões eram mais reconfortantes do que os barulhos vindos do outro quarto.

     — SAIA DAQUI! SAIA DAQUI! — gritava a mulher do quarto ao lado. Mais uma vez, vidros se estilhaçavam pelas paredes.

     — VOU MOSTRAR O QUE ACONTECE QUANDO ME ABORRECEM, SUA VACA! — era a voz de um homem, descontrolado. Ouvi um baque na estante e mais um barulho grosseiro.

     Minha mãe estava sofrendo. Meu pai estava sofrendo. Por que brigavam daquele jeito? Por que fazem isso quando do lado de fora tudo estava tão assustador?

     — ME DEIXE EM PAZ! SAIA DAQUI! — continuou ela. A porta do quarto se escancarou. Ele caiu de costas no chão e a vi subir em cima dele de quatro com um caco de vidro. — ME DÊ UM MOTIVO PARA NÃO MATÁ-LO AGORA, SEU CANALHA!

     — Nossa filha está olhando tudo, continue! — dizia ele virando o rosto de encontro ao meu — Está debaixo da cama, amedrontada. OLHA SÓ PANDORA! SUA MÃE VAI ME MATAR! VEJA BEM ISSO!

     — CALE ESSA BOCA! — mamãe deu um soco em seu rosto, ainda com o caco na outra mão, pronta para o abate. Eu não conseguia falar nada, não tinha palavras. Aqui embaixo era seguro. Eles não viriam até mim, não podiam vir.

     O rapaz se esquivou dela e se levantou, derrubando-a de cima dele. Chutou sua barriga.

     — MÃE! NÃO! — foi a única coisa que saiu. Minha mãe ficou sem ar depois que foi golpeada, mas reagiu ainda a tempo de furar a perna do papai com o vidro.

     — ARGH! — grunhiu ele — JÁ CHEGA! — E a pegou pelo pescoço, levantando-a do chão. Eu não podia ficar ali parada, se não ele iria matá-la. Minha cachorra latia sem parar. Queria parar a briga, assim como eu.

     — LUNA! SAIA DAÍ! — não adiantava, Luna era mais corajosa que eu. Por que eu sempre tinha medo de tudo? Mesmo com minha mãe correndo perigo, por que não saio de baixo dessa maldita cama?

     — Vou cuidar da Pan, não se preocupe — dizia ele enquanto pressionava o pescoço dela contra parede.

     Minha mãe já não conseguia mais falar.

     — LUNA! VENHA AQUI! SAIA DAI! — em uma última tentativa, minha mãe mordeu a mão dele. Papai a soltou no mesmo instante. Ela deu mais um soco em seu rosto e depois outro em sua barriga.

     — COVARDE! — gritava ela. Os trovões rasgavam os céus. Eu nunca esqueceria deste dia.

     — ALENE! Não faça isso, por favor... — Meu pai se ajoelhou depois do soco no estomago apoiando-se em um pedestal perto da escada que levava ao andar de baixo.

     — ESSA NOITE, SERA A ÚLTIMA VEZ QUE ME AGREDIRÁ, SEU ALCOÓLATRA IMUNDO! — Meu pai foi nocauteado com um chute no rosto. Sangue espirrou no carpete do corredor e atingiu Luna manchando seus pelos brancos, enquanto ele agonizava de dor.

     — LUNA! VENHA! — insisti mais uma vez. E por fim, ela veio. A puxei para debaixo da cama e a abracei bem forte. — Vai ficar tudo bem, amiguinha, eles sempre brigam, não é mesmo? Amanhã vai estar tudo bem. Vamos brincar naquele parque e você vai se divertir muito, não se preocupe.

     Papai pegou um candelabro e acertou as costas da mamãe quando viu que ela iria pegar mais um caco de vidro para atingi-lo. Ela gritou de dor, mas não desistiu. Continuou em pé, firme.

     — FECHE A PORTA DO QUARTO, FILHA! AGORA! — ordenou ela, mas eu não sairia de lá por nada. Tampei os ouvidos. E mais um relâmpago invadiu os céus, iluminando o sangue e todo o resto do lugar destruído.

     — MÃE!!! — gritei.

     Ela caiu no chão novamente e não reagiu mais. Papai pegou o caco de vidro de sua mão, esticou os braços para cima e o segurou com firmeza. Tremulo, mas decidido. Deu um golpe definitivo em seu pescoço, mamãe não reagiu, não gritou, mas deu uma última olhada para meu quarto. Esbugalhou seus olhos após a perfuração e não voltou a fechá-los. Um jorro de sangue saía do local cortado. Dava leves esguichadas para fora.

     Minha mente foi bloqueada.

     Meus ouvidos não escutavam. Larguei a Luna. O corpo não respondia meus comandos. Meu coração estava repleto de ódio. Saí de baixo da cama e me ergui. Antes de meu pai se levantar do corpo da mamãe, corri em sua direção e o empurrei com todas as minhas forças, fazendo-o cair para trás e rolar escadaria abaixo. O baque final foi em uma parede que estalou seu pescoço e o silenciou.

     Tudo congelou na minha cabeça. Luna voltara a latir. Mamãe caída ao meu lado, papai logo abaixo. Minhas pupilas dilataram ao entender o que havia acontecido. Os relâmpagos diminuíram, mas a chuva estava cada vez mais forte.

     Ajoelhei no chão.

     — Mamãe? Acabou, está tudo bem agora. Pode acordar... — porém ela não falou comigo, não agradeceu, e nem se expressou — Vou protegê-la da tempestade, não se preocupe — arrastei ela até meu quarto e a coloquei debaixo da cama. — Vou ver se consigo trazer o papai também, assim vocês fazem as pazes quando acordarem, tudo bem?

     Desci as escadas, e puxei o braço dele usando toda a força de meu corpo para trazê-lo para cima. Luna observava atentamente. Quanto mais eu puxava ele, mais sangue marcava o lugar. O soltei com um baque, chorando em frustração por não conseguir tirá-lo do lugar.

     Deus lá fora, continuava a chorar.

     Deus lá fora, continuava a chorar

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I - Onde Vivem Crianças IrrecuperáveisWhere stories live. Discover now