ATO 26

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Se temos coragem o suficiente para amar, temos para matar.

     Minha arcada dentária tremia de forma incoerente, como se meu corpo não mandasse mais em nenhum de meus sentidos

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Minha arcada dentária tremia de forma incoerente, como se meu corpo não mandasse mais em nenhum de meus sentidos. Um semblante grande e negro se aproximava da pouca luz que produzíamos, e então, ficou bem nítido que aquilo não era um humano.

Parecia mais um demônio. Totalmente escuro e de olhos brancos, brilhantes, quatro patas com unhas afiadas, orelhas pequenas semelhantes à de um cachorro, e sua pelagem fundia-se com a negritude. A criatura era do nosso tamanho. O lobo sequestrador de crianças estava ali, mais real do que nunca.

Petúnia saiu correndo, largando o resto de vela no chão e disparando para a entrada do subterrâneo, porém, como em um instinto selvagem, a criatura correu atrás dela, passando como um vulto por nós.

Aquilo foi o suficiente para me derrubar de costas. A garota corria aos gritos, enquanto o bicho rugia, disparando em sua direção.

— Petúnia! — gritei quando o vi abocanhando seu pé esquerdo e a arrastando para a escuridão.

— Fique aqui, Pan, não levante! — ordenou Brok, com seriedade — Ninguém mais vai desaparecer por aqui — continuou acelerando os passos em direção a Petúnia.

Sem notar, Brok chutou a vela para longe iluminando bem mais à frente, onde pude ver ela caída no chão, acolhida, sem se mexer. Não parecia que havia sido atacada, mas a criatura estava preparando o bote.

— Ei, bola de pelos! — atiçou Brok, chamando a atenção do bicho, que logo desviou seu olhar demoníaco para ele e avançou. Eu não sabia como Brok fazia para localizar o lobo, muito menos como fazia para correr dele.

O garoto disparou rumo ao pátio, enquanto o animal diminuía os passos, como se não pudesse mais enxergá-lo. Brok escondeu-se por trás de sua velha cadeira que ficava em um canto. Ao lado, abriu a caixa onde guardava seu violino, pegando-o com cautela. A criatura começou a farejá-lo, não estava muito longe do rapaz. Petúnia permanecia imóvel, ofegante e aflita, enquanto eu, não desprendia o olhar da besta.

— Petúnia! Chute a vela mais para frente! Não consigo enxergá-los! — sem questionar, engatinhou até a luz, e a empurrou. Conforme a claridade voltara a pegá-los, vi que Brok caminhava lentamente para a esquerda, enquanto a criatura para a direita.

Pareciam dois animais selvagens, pronto para o abate. O demônio havia localizado sua presa.

E a atacou.

Porem, Brok abaixou, fazendo o bicho agarrar o ar e se desequilibrar ao voltar para o chão. Suas unhas riscaram o piso criando um barulho ensurdecedor. Sem esperar, o lobo se jogou em frente a Brok para abocanhá-lo, mas novamente o garoto esquivou-se em um movimento flexível, deslizando o corpo para a direita.

Notei que Brok estava sem seus calçados. Ele esticava as pernas e apertava os dedos dos pés no chão, esperando o próximo ataque do bicho.

E não deu outra.

Sem pausa, a criatura que, naquele instante parecia um touro desgovernado, avançou com suas patas mortais para Brok. Desta vez o rapaz levantou seu violino com as duas mãos, e o estilhaçou na cabeça do lobo, fazendo as cordas e toda a madeira voar, arremessando a criatura longe, fazendo-a deslizar no piso incrivelmente limpo e acertando um dos grandes castiçais de velas que decorava os cantos do pátio. O barulho ecoou por todo o lugar.

O lobo assustado, se levantou rapidamente e desapareceu de vista, subindo o segundo andar. A vela que nos dava um pingo de luz se apagou por completo. Não conseguíamos enxergar mais nada.

Tudo a nossa frente era breu.

— Mas... que diabos foi aquilo?! — gemeu Petúnia em algum lugar ali perto.

— Eu... eu não sei... — respondi retomando o ar dos pulmões que por segundos parara de funcionar. Me levantei tentando apertar a vista, mas não resolveu. Uma mão pegou em meu braço. Senti que fosse infartar ali mesmo.

— Calma, sou eu.

— Brok! Como... como você fez aquilo?! — questionei sem saber em qual direção olhar.

— Eu não sei, Pan, só não queria deixar o lobo pegar você.

— Aquilo foi muito corajoso. Sério, eu... nem sei o que falar.

— Abutre, admito que você mandou bem. Obrigada por ter... me salvado também. Para quem não enxerga, está melhor que a gente — disse Petúnia.

— Só fiz isso pela Pan.

— Ei, vamos parar por aí, temos que sair daqui antes que aquele demônio volte.

A coragem até então desconhecida de Brok impressionara. De alguma forma ele podia sentir a presença de todos em sua volta e isso o deixou em completa vantagem contra o lobo. Devagar, caminhamos até onde Petúnia estava e juntos voltamos para a entrada do subterrâneo, apreensivos e com medo.

— Ele existe. O lobo que rasteja não é apenas boatos, é fato — conclui enquanto descíamos as escadas caracol, confortáveis pelas luzes dos castiçais que nos guiavam até os dormitórios.

— E agora? O que faremos? — Petúnia questionava enquanto apalpava seu vestido roxo, arrumando-o.

— O lobo é cego — afirmou Brok.

— Cego? Como sabe?

— Ele tinha a mesma estratégia que eu. Só conseguia notar a presença de alguém quando ele produzia algum barulho. Tirei os sapatos para confundi-lo.

— Brilhante! — abracei ele, quase derrubando nós três das escadas. Parei para pensar no que ele tinha sacrificado naquele ato — Poxa... seu violino ficou todo quebrado...

— Não tem problema. Para ser sincero, eu já não aguentava mais tocá-lo — sorriu apoiando em meu braço.

A adrenalina ainda circulava em nossos corpos. Aquilo foi mais emocionante que a própria disputa por classes e mais perigosa. No entanto, ainda havia muito o que descobrir.

Estávamos enfrentando um mal que não sabíamos exatamente o que era.

     Estávamos enfrentando um mal que não sabíamos exatamente o que era

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I - Onde Vivem Crianças IrrecuperáveisWhere stories live. Discover now