ATO 9

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Procuro estar sozinha o tempo todo, mas meus pensamentos insistem em me seguir até a morte.

Procuro estar sozinha o tempo todo, mas meus pensamentos insistem em me seguir até a morte

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       Trovões furiosos deturpavam a música da vitrola que tocava. Relâmpagos iluminavam os pilares do pátio principal, passando pelas frestas das tabuas pregadas nas janelas, deixando amostras algumas baratas escondidas. Elas subiam apressadas para cima e entravam em pequenas rachaduras no concreto.

     Atravessei o pátio principal e abri a porta que dava acesso às escadarias em caracol. Ao chegar nos dormitórios, empurrei o grande portão de metal e entrei.

     — Brok? — atravessei a ala feminina esticando o pescoço para o quarto masculino. Estava sentado em sua cama, de costas para a entrada com a cabeça baixa. O lugar tinha um cheiro forte, diferente.

     — Veio me massacrar também?

     — Vim entender — respondi me aproximando e sentando ao seu lado.

     — Por que quer entender?

     — Porque agora, somos colegas de orfanato e pelo que vi, ninguém conversa com você além de mim.

     — Cegos dão trabalho, como eu havia dito.

     — Não jogue a culpa em seus olhos, Brok.

     — Ela foi a única que me acolheu, Pan. Eu cheguei aqui completamente desamparado e sozinho.

     — Lola?

     — Sim, apesar de tudo, é minha culpa.

     — Sou toda ouvidos — Não havia mais ninguém presente nos dormitórios naquele fim de tarde.

     Brok, muito apreensivo, esfregava suas mãos no lençol, ansioso, até dar continuidade:

     — Lola e eu tínhamos um caso. Nos apaixonamos muito rápido. Me recordo do formato de seu rosto. Ela deixava que eu tocasse seus lábios enquanto sorria e isso era algo indescritível. A vejo em meus sonhos! Graças a isso, minhas memórias relacionadas a meu passado desapareceram com o tempo. Ela era tudo o que eu queria e os drenadores logo reconheceram isto.

     "Lola, porém, não conseguia lidar com as máquinas. Seus pesadelos a incomodavam todas as noites e quanto mais surgiam, menos sonhos conseguia criar, dificultando o processo de conversão. O tempo passou depressa. Lola ficava cada vez mais aflita. Seu irmão Patrick tentava ajudá-la, mas não conseguia implantar nenhum sonho em sua mente. Não era justo!"

     "Então fiz algo proibido"

     "Troquei nossos drenadores. Fiquei com o dela e ela com o meu. Assim, ela poderia ter meus sonhos. Sonhos em que estávamos juntos em muitos lugares bonitos"

      — Trocar os drenadores...?

     — Exatamente. É uma atitude inédita, porque nenhum irrecuperável compartilharia seus sonhos com outra pessoa. E na noite em que fiz esta troca, Lola não teve nenhum pesadelo. Ela acordou leve e sorridente, da forma que eu tanto gostava. O problema é, que vendo meus sonhos, ela descobriu meu maior desejo e então, começou a falar coisas preocupantes.

     — Que coisas? — perguntei atenciosa. Sua expressão continuava aflita. Me aproximei.

     — A lua. Ela queria ver a lua, as estrelas e as nuvens ao meu lado. Este era meu desejo, que acabou se tornando o dela também. Neste fatídico dia, ela puxou os fios de minha cabeça no instante em que íamos dormir, desligou os drenadores e, em silêncio, pegou minhas mãos, levantando-me.

     "Subimos as escadas. Mas é claro, eu desaprovei sua atitude e disse ser loucura tudo aquilo. Lola ria baixinho, e eu me calava. Ela abriu a porta que levava ao pátio principal, dizendo que nenhuma vela estava acesa e que mal conseguia enxergar qualquer coisa. E então... — Brok apertou os punhos e começara a tremer. Suas lagrimas, aos poucos foram escorrendo por seu rosto magro e acinzentado.

     — Então...?

     — Então ela me empurrou para dentro da porta novamente e gritou. Gritou tão alto que meus ouvidos doeram. Eu não sabia o que estava acontecendo. Tentei sentir sua presença e entender, mas depois disso, escutei apenas um rugido! Talvez o som mais apavorante que eu já escutara. Gritava para eu fugir. Sua voz foi se distanciando e se distanciando, até eu não conseguir escutá-la mais. Fiquei apavorado e sem fôlego.

     "Apalpei as paredes e desci rapidamente os degraus de volta para os dormitórios, gritando por ajuda, mas ninguém escutou. Já estavam em seus mais profundos sonhos, onde eu e Lola deveríamos estar. Hoje em dia, é você quem ocupa a cama dela, a garota do número quinze. "

     — Brok, por que me contou apenas uma parte da história? Essa tal criatura que sequestra crianças deve ser encontrada. Alguém está fazendo uma brincadeira de muito mal gosto aqui e deve ser parada.

     — Não é algo que eu me orgulhe de contar, e só quis me certificar de que você não cometeria os mesmos erros que eu. Quando você disse que não tinha sonhos, logo pensei que poderia tentar fugir dos drenadores também. Sobre os barulhos da criatura, não consegui distinguir o que era, mas ela existe. Agora, por favor, se puder me deixar sozinho, é tudo o que sei. Seja o que for que estava naquela noite, levou minha amada embora. Este é o fim da história.

     — Alguém mais desapareceu depois de Lola?

     — Não. Ela foi a única, mas todos estão preocupados. Qualquer um pode ser o próximo.

     Sessei as perguntas ao garoto. Brok era um ser humano muito sensível, triste, cheio de culpa e amargura. Mas não parecia um mentiroso. Acreditei em tudo.

     Antes de partir, segurei em suas mãos.

     — Vou te dizer uma coisa, colega. Não vale a pena ficar sofrendo pelo que passou e esquecer de viver — o abracei, sentindo seu corpo trêmulo. Por fim, o deixei ali e voltei para a ala feminina.

     Deitei em minha cama.

     Um emaranhado de pensamentos veio à tona e senti medo. Medo por não saber quais segredos assombravam esse lugar. Medo por não entender como tudo aqui funciona.

     Insanity Asylum parecia, assim como seus internos, ter seus próprios demônios. 

 

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I - Onde Vivem Crianças IrrecuperáveisWhere stories live. Discover now