Terapia - Muitas Vidas

Underdose

Pois é... João me veio com essa conversa. Diz ele que inspirado no "meus heróis morreram todos de overdose" para falar dos seus amigos que sumiram, foram exterminados ou sabe-se lá o que aconteceu.

Segundo ele, escreve, liga, manda sinais de fumaça, publica reels e nada deles aparecerem. Posta fotos deles antigamente no Instagram. Agora teve a ideia de fazer tipo aqueles posters do velho oeste americano com a cara da pessoa e o procura-se. Oferecer recompensa!

Mas cara, de onde você tirou isso? perguntei eu à ele.

Pois é. Acho que é a vida... Ou os tempos, que mudaram tanto que agora não temos mais nada um com outro. Aliás foi isso que meu psiquiatra me falou. Para eu refletir porque eu estou querendo manter as minhas relações interpessoais como se elas fossem como foram durante um tempo no velho normal. Como éramos crianças, ou jovens, ou começando a fase "madura". Agora, cara, você é idoso! E você está querendo que as pessoas mais jovens que você ainda te reconheçam como se ainda fosse como foi tempos passados!

Fiquei ali com aquela cara de imbecil olhando pra ele e ele me acordou do transe: bota isso na tua cabeça! Procura "novos amigos", novas relações, novos lugares para ir. Novos vícios. MUDE TUDO. Se adeque à tua idade, à tua vida, ao teu novo tempo. Ao teu novo "normal".

Sim, se não, nada do que estamos fazendo para te ajudar vai dar resultado: medicação, terapia, meditação, acupuntura, templos religiosos,... tudo isso vai sendo uma ocupação oca! MUDE-SE!

Eu sai do consultório, sentei num banco de praça e fiquei pensando em todas aquelas pessoas que eu amei (isso mesmo, amei) e que acabaram. Um filme muito grande. Os nomes, as fisionomias, as situações de graças, de brigas, de ajuda mútua, das conversinhas em pé, tomando café... Tudo morreu. Mas morreu de que? Morreu de underdose! Faltou amor para continuar? Faltou cumplicidade, companheirismo, objetivos compartilhados? O que faltou?

Fiquei com o cérebro rodopiando igual pião de menino pobre... até tombar sem forças. Não tenho as respostas até agora. Nem sei se vou tê-las.

Abro páginas dessas de pseudo-autoajuda e encontro frases bonitas, vídeos maravilhosos explicando tudo e propondo soluções mirabolantes a preços exorbitantes... Eu até diria sei lá o que. Vai que alguém leia e se ache ofendido, me processe por qualquer tipo de preconceito. É, porque agora TUDO é preconceito. A humanidade (eu só acho) ficou sem noção! E é capaz de aparecer um especialista de nada dizendo que a culpa é das vacinas, A, B ou C a seu bel prazer mas sem comprovação alguma. E vai ser publicada e replicada na internet como se fosse a verdade mais cristalina do que água benta pelo papa!

Olhei as árvores, os passarinhos e até alguns pombos que insistem em viver de migalhas. Perguntei para um deles: teus amigos também mudaram ou o teu coletivo ainda é o mesmo, unidos, desde que se juntaram? Ele me olhou, virou a cabeça de um lado para o outro e voltou a bicar o chão atrás de outra migalha para encher seu papo e poder voar até qualquer outro lugar. Pra recomeçar.

E eu, sem respostas até de um simples pombo, voltei pra casa. Com muito cuidado para atravessar as ruas e não esbarrar em alguma outra pessoa deprimida e ai começar uma discussão sem pé nem cabeça por nada.

É esse o novo mundo? O novo normal?