Uma ponte para o futuro

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Oi, João, como você começaria a construir uma ponte?

Cálculos, muitos cálculos. Premissas, muitas premissas. Pesquisas de materiais e profissionais que entendessem de projetos assim.

Tá, mas se o projeto não fosse físico mas mental, fundamentalmente. Uma ponte do presente para o futuro. Uma ponte com tudo inédito. Nada que já foi usado pode ser usado nela.

Nem lembranças nem pessoas; nem lugares nem paisagens; nem ideias nem pitacos de quem não entende disso. Não importam as coisas que foram vividas pois elas morreram apesar de fisicamente ainda existirem, nem as pessoas que te abalaram as estruturas nem aquelas de um contato efêmero de 2 ou 3 noites de prazer. Esquece. O mundo mudou. O tempo é outro. As necessidades são diferentes. O que era raso e servia, hoje precisa ser profundo porque precisará durar muito tempo e suportar coisas que não existiam.

Dick Trace morreu mas a Apple nasceu e trouxe das tirinhas dos jornais para a realidade os sonhos do passado.

Então, para começar está ponte, eu acho que precisas estar disposto a ultrapassar uma porrada de obstáculos que você vai olhar, colocar as mãos nos quadris e dizer para você mesmo, "e agora José?". Parar. Pensar mais, talvez até pedir ajuda a universitário ou às cartas como naquele programa do Sílvio Santos.

Cavar o primeiro buraco para as sapatas que sustentarão os Pilates a cada vez que você tenta tirar um pouco de terra dali você começa a suar frio. Bebe água. Olha pro céu como se pedisse ajuda. Revolve aquela terra que mais parece entulho. Revirar, peneira e descobre que nada mais te serve. Joga para o lado e volta a catar mais terra, a revirar, peneirar e descobrir que nada mais te serve. Novamente, descarta. E assim vai até que achas alguma coisinha diferente. Teu coração bate forte. Tua cabeça volta no tempo. Senta sobre o monte de entulho, joga a pá para o lado e fica olhando pra quela foto já bem amarelada pelo tempo e umidade. Passadas costas da mão tentando limpar, passado te a perna da calça e fica mais visível. Era uma adolescente sorrindo, de vestido branco segurando um punhado de flores e com uma espécie de coroa de flores sobre a cabeça.

As lágrimas descem pelo rosto suado. Cada vez mais intensas até o choro. O cérebro volta no tempo. Lembra de muitas coisas que aconteceram apesar de tanto tempo no passado. Das alegria, dos sorrisos, do gozo intenso e gostoso de sentir. Daí os anos vão passando em câmara acelerada e pouco tua retina consegue registrar. Passeios, atoleiros, andando em estrada de barro tarde da noite com criança no colo, mala, guarda chuvas e uma lanterna, debaixo de chuva até chegar ao destino.

A alegria de comemorar a vitória depois de uns quilômetros percorridos.

Mas isto não serve mais para colocar na sapata da ponte. Respira fundo, pega a pá e volta a cavar. Mais entulhos peneirados e o que aparece é logo descartado para não aflorar outros sentimentos. Vai se seguindo a rotina até que aparece uma imagem holográfica, como se fosse a pessoa que estivesse ali enterrada, esquecida, por muitos anos. Me sento no chão do buraco e fico olhando para aquela imagem: os olhos e os cabelos me chamam logo a atenção. É como se eu sentisse os fios nas minhas mãos, aquele olho claro e pequeno tão brilhante olhando meus olhos. As recordações vão passando lentamente para demorar, aproveitar. Não conseguia pegar. Toda vez que tentava minhas mãos ultrapassaram por dentro daquilo que era uma imagem perfeita.
Falei para ela que a ajudaria a sair dali e sentar lá no presente para a gente conversar.

Para minha surpresa ela não queria sair dali e voltou a se esconder dos meus olhos...

Como eu precisava começar logo a construir minha ponte, concordei com ela mas na minha alma ainda está a esperança de ouvir aquela doce voz, de ver aqueles olhos e os cabelos talvez misturados com fios brancos.

Mais um pouco e eu cheguei até onde apareceu uma enorme pedra como se a me indicar que naquele buraço não precisaria cavar mais.

Olhei e ela não estava mais ali. Lançaram uma escada para eu subir. Subi aqueles mais de 50 degraus e olhei para baixo sussurrando baixinho: não queria perder você. E novamente as lágrimas voltaram a se misturar com o suor.

Passei as costas das mãos no rosto e as seque na calça. Suspirei. E repetindo para mim: tinha uma pedra no caminho. No caminho tinha uma pedra...

Terapia - Muitas VidasWo Geschichten leben. Entdecke jetzt