Quem sou eu?

1 0 0
                                    

E foi assim que o João começou a falar comigo...

João não sei nem quem eu sou! Mas, podemos falar sobre isso sim. Vamos tentar. Quem sabe nós dois chegamos a um caminho para nos descobrirmos?

Recentemente li um trecho de Fernando Pessoa que falava sobre isso: "Procuro despir-me do que aprendi. Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram. E raspar a tinta  com que me pintaram os sentidos. Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras. Desembrulhar-me e ser eu."

Acho que isso pode ser um caminho. Ou serão apenas palavras de um Poeta? Não sei muito dele. Nunca li nada completo dele mas as poucas coisas que já li me entraram na alma, fazendo uma confusão danada!

Eu te pergunto, João como podemos nos despir do que aprendemos? Desde cedo ou melhor, desde que nascemos aprendemos a chorar, por exemplo. E receber o peito com leite de nossa mãe para nos calar ou nos alimentar? Ou será que sempre foi pelas duas coisas? Será que nosso choro era apenas o despertador para ela nos alimentar? Como esquecer disso?

Como esquecer dos tombos quando já começávamos a engatinhar e ela nos levantava? E dela curar nossos joelhos quando arranhados por alguma queda mais forte? Do arrumar de nossos cadernos e tudo mais que levávamos para a primeira escola? Não consigo imaginar precisar esquecer disto para me desembrulhar-me!

Como esquecer das lições que na escola éramos levados a aprender, senão para saber, para "passar de ano"? Claro que a maioria delas já esqueci. Ou esquecemos. Mas muita coisa ainda ficou embrulhada aqui dentro!

Estes dias, por exemplo, quando a bandeira do Brasil ficou em evidência porque alguém achou (!?) que era a bandeira de um partido político! Sim, como poderia uma pessoa proibir de não usarmos um dos símbolos da Pátria que muitos de nós, mais idosos, aprendíamos em nossas primeiras escolas a cantar o Hino Nacional e a hastear a bandeira, logo cedo, antes de começarmos a estudar? E eu, que fazia parte do trio que levava a bandeira dobrada até o mastro na frente da escola para hasteá-la e pequeninos ficávamos olhando ela se deliciar com o vento que não a deixava quieta. Eu não posso desembrulhar isso de dentro de mim!

Como esquecer da briga em um jogo de futebol depois da janta no Pedro II? Minha primeira briga de socos e pontapés com um colega de sala?

Como esquecer do "be quiet Carlos Alberto!" da professorinha de inglês me repreendendo pela bagunça que eu (e outros fazíamos) ou das provas de História do Brasil nas quais o professor abria um jornal depois de nos "entregar" as provas e achávamos que poderíamos "colar" as questões que não sabíamos e ele, ia chamando qualquer um para entregar a prova e ele respondia ao nosso porque com um "você já respondeu tudo que sabe!" E ao receber a prova corrigida, na aula seguinte, era um ZERO em vermelho! e a observação "estude mais!" Como eu posso jogar fora isso?

E da minha primeira bicicleta Monark (inglesa de freios contra-pedal)? Não posso. Me desculpe. Ou será que tenho que "jogar fora tudo que os outros me "ensinaram a ser" para poder despir minha alma?  Estes sentidos, essas coisas não foram pintados! Foram gravados na minha alma! Foram coisas que me alegravam naqueles dias. Ou será que eram apenas falsas ilusões?

Como esquecer do primeiro beijo de língua "roubado" nos bancos de um ônibus de volta pra casa e de ainda colocar a prancheta com as anotações de aula para cobrir o que estávamos fazendo e depois ver, envergonhados, o sorriso do cobrador? Como esquecer que eu estudei no colégio que foi feito para o futuro Imperador estudar? Fiz minhas provas de admissão numa das salas que podem ter abrigado o futuro Imperador. E, se estudar era um dever dele, como posso "desembrulhar isto" impunemente?

E da hora de saber que havia entrado para a faculdade depois de provas dificílimas depois de ter estudado apenas por 3 meses num cursinho em Santa Teresa, que ocupava salas ociosas no turno da noite do Colégio Americano? Não posso. Isto ainda está gravado forte, tanto assim que estão vindo quando folheio as primeiras páginas da minha vida. Mas dizem que esse "eu" nos foi pintados pelos outros e que isto nos fantasia do quem somos!!!! Ora po%!&a! Se, como aprendemos nos livros da Doutrina Espírita, nossa alma veio para este planeta para aprender e com o aprendizado daqui evoluir? Fica muito complicado desencaixotar tudo isso!

Sem falar nas meninas que me ensinaram as primeiras lições de amor. Um amor puro, sem as sacanagens que completam hoje as relações. Era o sentir o coração bater mais forte quando estavam perto um do outro; de sentir falta dessa presença quando ausentes. De sentar em "carteiras" uma ao lado da outra, de estar juntos na hora do lanche (ou recreio) de ir até o ponto do ônibus que a levaria para casa.

Como era complicado chegar na faculdade em Botafogo, trabalhando à 75km dali? Não, tenho quase certeza, João, que não conseguirei fazer isto.

Nem eu, quando lembro que no meu tempo de faculdade havia uma menina lindinha que num cordão de pescoço tinha um sininho que eu ouvia quando ela vinha chegando para a aula. Eu também sempre guardava uma cadeira ao meu lado ou a minha frente para ela... E das vezes em que saíamos de carro para apenas ficar conversando e ouvindo rádio numa das praias desta cidade.

Nosso caixote está muito cheio de coisas que não são roupas velhas, quinquilharias, coisas quebradas. Muito pelo contrário, são coisas fortes que marcaram tanto nossa existência que nossas almas levarão consigo para onde fores depois que a gente morrer!

João, vamos pra casa pensar nessas coisas e depois a gente fala mais, tá bem? Quem sabe a gente ache alguma coisa para desencaixotar?

Terapia - Muitas VidasOnde as histórias ganham vida. Descobre agora