A Ficha

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Cheguei num ponto em que era importante para o resto da minha vida, conversar calma e profundamente com alguém que tivesse dividido comigo alguns bons momentos e outros nem tantos. Que não fosse do círculo mais estreito mas que fosse do grupo que consideramos amigos.

Procurei pela Tais (nome fictício) para ser minha amiga por um dia. Como assim?, perguntou ela e eu disse que gostaria que ela aceitasse passar um dia comigo só para conversar; que fosse num lugar sossegado sem muita interferência de outros humanos. E ela aceitou.

Combinamos lugar e hora de nos encontrarmos e chegamos praticamente juntos. Levei na minha mochila algumas coisas que pudéssemos nos alimentar nesse tempo. Ah, pedi para ela levar a esteirinha de yoga.

Escolhemos um lugar abaixo da copa de uma frondosa árvore do Parque da Cidade. Estendemos nossas esteiras de forma que ficássemos um de frente para o outro.

Comecei agradecendo ela estar ali comigo para compartilhar dúvidas e acertos. E comecei.

Acho que você é a pessoa mais indicada para o que gostaria de falar e que pudesse contrapor algumas das minhas ideias ou atitudes. Convivemos muito intensamente nossos problemas e alegrias.

Recentemente pedi à minha terapeuta um "período sabático" pois havia completado um ano de ajuda profissional. Precisava me avaliar e desde então tenho refletido sozinho e com os amigos invisíveis que conquistei nos últimos 50 anos. Seria bom para mim te ouvir.

Muitas coisas mudaram dentro de mim desde que nossas conversas se espaçaram. A nova vida de cada um de nós fez com que isto fosse acontecendo cada vez mais.

Muitos conceitos que eu tinha arraigados dentro de mim foram sendo "arrancados e jogados fora".

A Posse de coisas e pessoas foi demorada e complicada até que de repente, não mais que derrepente o desapego cresceu e floresceu dentro de mim. Descobri que na verdade nenhum deles era meu. Era apenas uma ilusão. Fui descartando coisas que guardava por tanto tempo sem nunca voltar a usá-las desde que elas chegaram para minha vida. Papéis, anotações e trabalhos profissionais foram ensacados e desceram pela tubulação do lixo.

Mas, como? Jogaste fora aqueles trabalhos que conheci? Sim. Por mais belos e profundos que tivessem sido já haviam passado do prazo de validade: não serviam mais para ninguém. Mudei as formas de apresentar, procurei outros públicos e nada. Interesse tão baixo que não faria falta para nenhum deles. Até minha biblioteca digital eu compartilhei e ninguém se interessou! Para que guardá-los, ocupando espaço e nada mais?
Nada que um delete não resolvesse. E assim passei para os livros físicos, roupas e tudo foi aliviando meu canteiro de plantas sem vida que eu insistia em regar.

As Amizades que eu cultivei por todos os anos da minha vida e que eu percebi, duramente, que não foram nascidas para serem eternas mas apenas enquanto durassem assim como os amores de nossas vidas: TUDO tem prazo de validade. E, a gente acaba esquecendo de verificar isso e, quando vai olhar, já está cheio de fungos e bactérias nocivas. Os colegas aceitamos em nossa vida como aqueles de pequeno prazo de validade como as ofertas dos supermercados. Nem dá tempo de nos sentirmos donos mas, muitas vezes, guardamos na memória apenas enchendo espaço. É preciso limpar a memória.

Caramba! Ainda não havia me dado conta disso! E me preocupo com tanta gente e tantas coisas que estão precisando disso.

Então! Mãos à obra. Vai doer. Alguns muito mais que outros mas, também existem os indolores.

E os SENTIMENTOS? Carinho, gratidão, amor, raiva, retribuição, compreensão, prioridades? Todos são efêmeros: duram exatamente o tempo em que ele são necessários. Você não recebe carinho, gratidão, amor, raiva, retribuição, compreensão a vida toda. E você também não é prioridade para todos o tempo todo. Até para um único caso.

E a RELIGIÃO? Descobri recentemente que todas as dedicações à "templos e verdades" são indispensáveis e, mais do que isto: pregam a caridade através de cobrança e não de espontaneidade. Sempre vão encontrar uma maneira de ir em busca do vil metal. Avalie os templos todos pelos quais você passou e me diga em qual dele não falaram, escreveram sobre você dar dinheiro sob qualquer adjetivo. Não conheci nenhum. E no primeiro que entrei em minha vida, havia o momento em que alguém passava por toda a assistência com uma sacola de veludo vermelho. E quando você não estendia a mão, o tempo dela em sua frente era maior... Templos luxuosos, vida luxuosa... E Jesus pregava de sandálias...
Isso me machucou muito no dia em que essa realidade me foi mostrada. Pedi perdão ao Criador pelo tempo e dedicação por onde passei. Hoje faço minha caridade no sentido exato que aprendi: dou a quem eu vejo que precisa. E tem ganhado mais aqueles que nem pedem, como "seu" Sebastião a quem, com um grupo, levávamos uma porção de alimento e o seu agradecimento era sincero.

Aprendi, a duras penas, que nada neste mundo nos pertence ao ser questionado com um QUEM É VOCÊ? Isso me fez parar para pensar. Achei, com razão, que nada do que eu carregava achando que formaria meu eu era a resposta. VOCÊ é apenas a sua essência e nada mais. O resto são apenas o necessário ou desnecessário para você viver.

Depois de algum tempo calada, só me olhando e ouvindo, Tais me perguntou como assim? E eu respondi perguntando: qual é a tua essência? O que sem ela você não existe?

Falou muitas coisas... E eu apenas disse: tudo isso é desnecessário! Tudo isto foi implantado na tua cabeça como necessário: competição, marketing, ego, poder... até comida você pode comer menos e melhor...! Pense bem.

O que somos é apenas a nossa ALMA (ou o nome que você queira dar). Ela é a essência de nossa vida. Sem ela não existimos. Todo o resto se desfaz quando a "vida" aqui neste planeta cessa.
Tudo que é além do necessário para mantermos ela "viva" aqui, é desnecessário.

Ela me olhou, com lágrimas nos olhos claros e aquele sorriso que eu sempre admirei: eu nunca pensei nisso.

Não fique triste, querida. A maioria esmagadora da humanidade é levada a pensar exatamente da forma que eu pensava e você pensa.

Parei para fazermos um lanche, mas ela continuou.. Como você chegou a estás conclusões?

Lembra do começo da "pandemia"  que foi plantada na gente como forma de poder e ganhos, que só agora as verdades vão tendo seus véus levantados? Tentei fazer artesanato para passar o tempo em que eu fiquei privado da minha liberdade. Todas as tentativas duraram pouco tempo. Passei de uma para outra até o dia que resolvi parar tudo. Pouco depois fui diagnosticado com Depressão e Ansiedade. Remédios e terapias tomaram conta da minha vida. Fui levado a repensar, procurar o que estava errado. Um belo dia, por acaso mas não por acaso, um trecho de uma poesia de Fernando Pessoa acionou o gatilho para começar minha mudança: revirar o baú da minha existência e jogar fora o que não me serve. (Isso em essência).

E aí eu comecei a procurar o que estava no meu baú e não era necessário até por não sentir falta durante tantos anos.

Depois, os relatos de um psicólogo que passou por tudo aquilo em Auschwitz em que eu aprendi a superar os desafios da vida, pois os que ali estavam, viviam um dia de cada vez. Na realidade, a possibilidade de morrer era muito maior do que sobreviver. E assim, o esforço para tentar sobreviver levou aqueles que conseguiram superar as possibilidades de morrer.

Certamente ainda terei que superar desafios mas, estou, a cada dia, escolhendo as melhores formas de simplificar a minha vida e ir esvaziando o cesto de aprendizados que nossa alma trás para aprendizado.

Recolhemos nossas esteiras, colocamos os lixinhos em um saco de papel, nos olhamos no fundo de nossos olhos, nos abraçamos apertadamente e, de mãos dadas, procuramos uma lixeira para o depositamos.

Na porta nós despedimos pois cada um voltaria à sua rotina. Ainda olhei para trás e falei baixinho: não queria perder ela mas isso não depende só de mim.

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⏰ Last updated: Jun 03, 2023 ⏰

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Terapia - Muitas VidasWhere stories live. Discover now