O meu silêncio de cada dia

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João, estou te incomodando com estes meus problemas, amigo?

Não, claro que não. Chega uma hora na vida que precisamos jogar o lixo no lixo. Manda ver até porque estou aprendendo muita coisa que também preciso fazer.

Legal, João. Então voltamos ao silêncio que eu falei no meio da barulhada a outra história.

Dias e dias que ficamos parados. Um olhando para a cara do outro e seguindo uma rotina quase que silenciosa. Até parecia que as pessoas tinham medo de fazer barulho. Os pagodeiros não tinham mais as reuniões aos sábados ou domingos que iam de meio dia até quase meia noite. Não havia festa de aniversários nem churrascadas regadas a muita cerveja. Aliás, acho até que a carne era só desculpa... Enfim, vida que segue.

Mas eram assim meu dias desde que a confusão chegou. No começo, ainda via televisão porque era uma forma de saber o que fazer diante do que lá fora estava acontecendo. Até cheguei a conversar com minha mãe como foi a época da Guerra que ela viveu. Aprendi mais sobre ela. Mas, por incrível que pareça o que mais aterrorizou ela foram os relato da Espanhola porque morria muita gente e os corpos eram postos nas ruas para que fossem removidos e enterrados como o que hoje chamamos de indigente. Isso marcou muito ela.

Passei os primeiros dias da confusão de agora com ela e minha irmã mais nova. E era silêncio só quebrado nas hora das refeições e nas hora em que recebíamos as encomendas feitas pois não era aconselhado ir "fazer compras pessoalmente". Até nos momentos em que víamos os jornais da semana ficávamos calados, assustados.

Voltando pra minha casa, continuei a viver esta rotina porque minha filha teve que continuar a trabalhar e o marido era quem levava e buscava porque não havia transporte público e minha companheira foi para lá para ajudar a ela com o neto.

E foi assim até pouco tempo quando tudo voltou a ser como antes. Voltou? A vida foi voltando. E o meu silêncio de cada dia foi diminuindo as poucos mas foi diminuindo. Agora, hoje, por exemplo, ainda tem barulhos aqui dentro mas lá fora é silêncio. Parece que tem hora para as pessoas "tomarem banho de sol" como nos presídios. Lá fora calmo. Aqui agitado.

Toda hora sou interrompido do exercício do meu direito de ficar em silêncio. Interrompi minhas sessões de yoga, meus momentos de meditação... mas, consegui que a TV só fosse ligada aos finais de semana quando o neto chega e quer ver desenhos animados... Ai, então, é dedicação a ele. Falta silêncio e há excesso de barulhos normais para um menino de sete anos.

Hoje, na hora em que estou escrevendo está silêncio dentro e fora apenas quebrado pela trilha sonora de meus momentos de yoga porque a meditação que faço tem apenas a marcação de tempo que eu estabeleci para fazer.

Nesse silêncio que vivi estes tempo aprendi a conversar com meu corpo e com minha alma. Perguntas, queixas, elogios todos feitos em voz baixa. Não tinha respostas, apenas consequências e intuições que podem ser creditadas às respostas que eu gostaria de ouvir.

O que mais o silêncio te deu que você ficou tão apaixonado por ele que nem consegues ficar meia horinha longe dele, me perguntou João.

Acho que não sei explicar mas senti-lo plenamente é muito bom. Aprendi a ouvir e sentir minha própria respiração, a controlar sua velocidade. E isso me trazia (e traz) o benefício da "paz de espírito". Fico calmo. Consigo fazer coisas que gosto como cozinhar em silêncio apenas quebrado, algumas vezes, por esta trilha, baixinha, quase imperceptível. Os movimentos são mais lentos e precisos; o tempo é mais facilmente controlável. A comida fica mais alegre. O prazer de fazer tem essas coisas. O fogo baixo, sem pressa. Colocar a comida no prato, arrumadinha, sentar à mesa como nos tempos de criança ou quando vou na casa de minha mãe. Ter tempo e lembrança de agradecer ter comida no prato para alimentar o corpo e a alma. Comer devagar, em silêncio, até sem música. Só ainda não me habituei a contar quantas mastigações mas hoje, certamente levo bem mais tempo para me alimentar do que nos tempos passados quando às vezes mal tinha tempo de comer um sanduíche ou dois quibes e uma coca-cola como fiz inúmeras vezes.

Isso tudo é apenas um pouco do silêncio que gosto. Até tenho passado algumas dessas horas vazias, olhando vídeos de pessoas fazendo caminhadas ou pequenas viagens pela natureza e eu me transporto para lá. E minha cabeça começa a me imaginar fazendo a mesma coisa. Alguns deles vejo muitas vezes, admirando a paz que aquela(s) pessoa(s) estavam sentindo. Mas, também tenho visto coisas que não consigo fazer, por medo de chegar até ali. Sempre me lembro do texto de um deles que diz mais ou menos assim... "lugar tão bonito que se você morrer ai nem urubu te acha..."

Mas é isso, João, poder me fazer companhia tem sido uma experiência maravilhosa apesar do receio das noites chegando que acho que "descobri" o motivo: não ter nada para fazer! Nestes últimos dias, fiz atividades que me fizeram esquecer a chegada da noite... Nem me dei conta se ela chegou correndo ou sorrateiramente. Mas, também, dormi bem. Calmo, sem me mexer muito na cama. Foi bom. E ainda tive tempo de conversar com meus amigos invisíveis sobre cada uma das pessoas que amo.

Até o próximo!


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