CAPÍTULO 3

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Sarah curvou-se e beijou a testa da filha.

- Fica bem, querida. Mamãe vai trabalhar, mas daqui a pouco volta. - disse enquanto ia em direção a porta. Segurava um casaco jeans em uma das mãos e na outra uma bolsa. Virou-se para Dona Célia. - Mãe, se precisar de qualquer coisa me liga.

- Ligo sim! – a outro concordou. - Só um minuto, Kat. Vou com sua mãe até a porta.

As duas foram em direção a principal, onde Sarah parou e virou para a mãe. Entreolharam-se por ligeiros segundos e Dona Célia sabia o que iria ouvir. O mesmo assunto que ouvira durante toda a manhã.

- Dona Célia! - o tom de voz de Sarah era bem potente e falava de maneira muito séria.

- Diga, Senhorita Sarah. - a mãe falou debochando do tom de voz de sua filha como sempre fazia quando ela tentava repreendê-la.

- Não estou brincando. – Sarah não aceitou a tentativa de descontração. - Por favor, sei que você cuida muito bem da Kat, e sei que você não deixaria nada de mal acontecer a ela. Mas hoje eu te peço encarecidamente que não tire os olhos dela. Não a deixe completamente sozinha. Pode deixá-la no quarto brincando com os bonecos, sei que ela gosta disso, porém de tempo em tempo dê uma olhada nela. Por favor, mãe, faça apenas esse favor para mim. - Sarah falou tudo tão rápido que Dona Célia demorou um pouco para raciocinar tudo o que fora dito.

Ficaram um tempo se entreolhando.

- Claro, filha. Entendi sua situação. Eu também ficava extremamente preocupada quando você... – o passado aflorava pela garganta das duas tentando sair verbalmente, mas as duas se seguravam para engoli-lo, e aceitar qualquer outra resposta. - Bem, você sabe do que estou falando. - Sarah não falou nada. Mordeu o lábio e concordou com a cabeça. O passado não descia a garganta, ficava entalado, dificultando que essas deglutissem as ideias.

- É por isso que estou preocupada, mãe.

- Entendo...

Ficaram paradas absorvendo o passado. Sarah voltou ao presente e olhou seu relógio.

- Já está quase na hora! - deu um beijo no rosto da mãe e correu para o carro.

Abriu o vidro da janela do motorista e acenou com a mão se despedindo ligeiramente. Ligou o motor, que reclamou rosnando, e logo sua imagem não era visível da porta de casa. O pequeno carro vermelho desaparecera ao longo da rua.

Dona Célia voltou à cozinha. Parou na porta ao ver que Kat já não estava mais lá. O prato da gelatina estava largado. Não sobrara nenhum sinal da sobremesa. Estranhou ao ver que a neta já havia saído. Ela nunca saía sem repetir várias e várias vezes. Kat adorava gelatina de morango e não se saciava apenas com uma repetição.

Voltou para a sala e começou a subir as escadas. Assim que chegou aos últimos degraus pôde ouvir a garotinha conversando com seu urso.

- Teddy! Eu falei para você não convidar ela sem mim. Oras... E você Dolly? Não fez nada? Deixou que ele chamasse sozinho? - ficou calada. A avó desacelerou os passos para fazer menos barulho e ouvir a conversa da neta. - Ta bom. Dessa vez passa. Então ela virá. Estou com um pouco de medo, mas acho que vai ser legal ter alguém diferente na mesa com a gente. – a empolgação na voz da neta era oscilante entre picos de certeza e dúvida. – Que ótimo, não? Vou arrumar um delicioso chá para ela.

A avó chegou até a porta do quarto e viu Kat sentada em sua mesa de criança junto com seus dois brinquedos favoritos: Teddy e Dolly. Sarah havia comprado aquela mesa quando Kat completara um ano de idade. Fora um dos presentes que a filha mais adorara. Era pequena, redonda, e feita de madeira pintada de branco. Possuía desenhos de borboletas espalhados em seu tampo. O suporte era apenas um cilindro centralizado que na parte mais inferior se dividia em outros quatro perpendiculares. O conjunto que Sarah comprara vinha com quatro cadeiras extremamente trabalhadas com detalhes na madeira, e pintadas com os mesmos desenhos de borboleta.

A mesa ficava no quarto de Kat entre a cama e sua escrivaninha, ambas de madeira também pintada de branco. O outro móvel presente no local era o armário, com o mesmo estilo, encostado na mesma parede da porta. As paredes do cômodo eram pintadas de um rosa bem claro. Kat amava seu quarto do jeito que era. Delicado como ela.

- Então quer dizer que a mocinha saiu correndo da cozinha sem nem avisar pra vovó? - Dona Célia brincou.

- Ah, vovó... - Kat falava seriamente. A avó adorava quando sua neta alterava a expressão do seu rosto tentando imitar as feições de um adulto. - Tinha que resolver negócios. Perdão.

- Tudo bem, senhorita. Quer dizer então que precisava resolver negócios? - Dona Célia sentou na beirada da cama. - Posso saber que negócios? – repetia a palavra que a neta usara, se divertindo com as ideias mirabolantes da pequena.

- Claro. É que eu, o Teddy e a Dolly estávamos resolvendo se... - o rosto de Kat virou em direção a porta de entrada. Um barulho de campainha tocando cortou sua fala pela metade, interrompendo-a. - Quem será, vovó?

- Deve ser sua mãe. Vive esquecendo as coisas. Só não esquece a cabeça porque está colocada no pescoço. - brincou enquanto se levantava. A neta riu.

- Só você mesmo, vovó. - Kat gargalhava.

Dona Célia mandou um sorriso para a neta como resposta e desceu as escadas. Tentou ver quem estava do outro lado da porta pelo olho de vidro, porém não conseguiu enxergar nada além da rua deserta. Abriu-a e parada em frente a ela estava uma garotinha.

Aparentava ser um pouco mais velha que Kat, pela estatura mais alta. Tinha cabelos negros amarrados dos dois lados de sua cabeça por laços vermelhos, olhos pretos e uma pele parda. Vestia um macacão jeans pendurado por duas alças nos ombros. Segurava um pirulito grande e colorido na mão, e não havia ninguém ao seu lado.

- Oi, pequena. No que posso ajudá-la? - Dona Célia sorriu enquanto abaixava-se e verificava se não havia ninguém mais com ela, vislumbrando com o canto de olho toda a parte externa da casa.

- Kat! - a garota disse sem demonstração feições no rosto e lambeu o pirulito rapidamente.

- Como? – a senhora estranhou e segurou a saliva que tentara descer pela garganta em seco. Focou imediatamente o olhar na face da menina, parada a sua frente.

- Kat!

- Você quer que eu a chame? - Dona Célia estava confusa. Quem era aquela garota? Kat não tinha amigos, e quase nunca saía de casa. A fisionomia apresentada não lhe era estranha. Recusava-se a acreditar que era a mesma pessoa, a mesma criatura.

- Kat!

- Só um momento... - levantou-se e virou o rosto gritando pelo nome da neta. Arrependeu-se logo em seguida por tê-la chamado. Poderia ter inventado qualquer desculpa para não colocar a neta cara a cara com aquela outra menina. - Ela já vem. - ao virar o rosto para a porta já não havia mais nada além do vento sibilante.

Pôs a cabeça para fora e olhou ao redor.

Nada!

- Quem era? - Kat estava parada no alto da escada. O pescoço esticado tentando ver o lado de fora da casa.

- Ninguém, minha querida. Ninguém. - Dona Célia fechou a porta e não olhava para a neta.

De relance viu as pernas curtas de Kat irem apressadas para o quarto. Os olhos de Dona Célia se encontravam completamente perdidos, fixos no último degrau inferior. A saliva que tentava descer ficara entalada junto à memória que aflorara. Seu coração batia descompassado.

Apenas um nome rodava sua mente confusa: Sarah!

Vamos Brincar, Kat?Where stories live. Discover now