Capítulo 40

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Mesmo após deixar a cozinha, Dona Célia não se sentia completamente sozinha. Havia uma aura, a tempos falecida, que voltará a persegui-la. Algo que a incomodava e ela achava que sabia o que era. Martin causava na senhora uma sensação oscilante entre o nojo e a repulsa, que alterava todo seu organismo. O coração descompassado. As mãos gélidas e formigantes. O corpo a uma temperatura interna desconfortável. A cabeça latejante e borbulhando em pensamentos. O estômago urrando ao se remexer vazio.

Contudo não era apenas aquele homem que a incomodava. O último fator biológico deixava evidente a fome que sentia devido o jejum, iniciado no dia anterior. Jejuar fora a melhor maneira que encontrou como prova para Deus de que estava precisando muito da ajuda desse para encontrar sua neta. Outra justificativa para a atitude, considerada extrema por Sarah, era a de que não aguentava imaginar Kat sofrendo sozinha nas mãos da psicóloga. Na noite anterior, quando Sarah descobrira sobre o jejum da mãe, fez uma sopa de mingau para Dona Célia e a obrigou a tomar. Com muita relutância, a senhora tomou um único prato, e nada mais desde então. Rejeitando as súplicas da filha, aquela fora sua única refeição em cerca de 48 horas.

Subia as escadas um pouco cambaleante, amparada somente pelo corrimão, o qual sentia e sustentava praticamente todo o peso de Dona Célia. Seu objetivo momentâneo era conseguir chegar em seu quarto e tomar o remédio às escondidas de Sarah. Sabia que se a filha descobrisse sobre os remédios daria um enorme sermão a xingando. A última coisa que Dona Célia queria ouvir era Sarah falando sobre como tomar remédios com o estômago vazio e sem supervisão médica é uma loucura. Ela também sabia que o que fazia era errado, mas acreditava no poder placebo daquelas pílulas.

Atravessou o corredor escorada nas paredes. Sua visão estava começando a se fechar. Breu e borrões aos poucos dominavam a imagem a sua frente. Arrastava as pernas mais rapidamente, precisava imediatamente dos remédios. Durante uma fração de segundos, uma imagem não detalhada de algo surgiu e desapareceu no final do corredor. Dona Célia conseguiu ver algo brilhando e se ofuscando em seguida na altura de sua cintura. Não deu atenção a isso. Talvez fosse alucinação começando a mexer com seus sentidos e retomar o medo do passado aflorando. Não havia tempo para sentir culpa.

O remédio!

Entrou em seu quarto e se apoiou na cômoda de madeira. Tateando com as mãos desnorteadas, procurava a maçaneta da gaveta superior. Abriu-a e começou a tirar tudo de dentro, não se importando em deixar cair ao chão. Cartas, um pente velho e algumas jóias foram arremessadas contra o solo até Dona Célia encontrar a pílula vermelha.

Tentou pegar uma garrafa de água em cima da cômoda, mas, com o braço bambo, deixo essa cair também. Largou o remédio sobre o móvel para não perdê-lo e agachou-se para pegar a garrafa. Inevitavelmente chocou seus joelhos ao chão. Não sentiu dor. Seus nervos sensoriais estavam funcionando muito lentos. Apalpava e não encontrava a garrafa. Arfava em desespero. A dor no estômago aumentava e sua visão detectava apenas tons de preto, branco e cinza.

Apoiou-se com as mãos na madeira. Tomaria o remédio sem água mesmo. Só precisaria forçar a pílula a descer seca em sua garganta. Um esboço esbranquiçado confundiu ainda mais Dona Célia. A garrafa de água estava sobre a cômoda. Mas como? Ela havia deixado cair. Tinha certeza! Seriam alucinações a confundindo cada vez mais? Apagou a confusão mental e bebeu a água da garrafa o mais rápido que pode, juntamente com o remédio.

Seus passos cambaleantes foram forçando o corpo da mulher para trás. Essa fechou a garrafa sem ter consciência do que fazia. Assim que suas coxas tocaram a beirada da cama, ela deixou seu peso cair sobre o colchão. A garrafa de água, mal fechada, escorregou de sua mão e caiu ao chão.

Vamos Brincar, Kat?Onde as histórias ganham vida. Descobre agora