32. ... depois morre

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Eu me viro e então o vejo: o Caído com o rosto vermelho, sorrindo, os olhos brilhando, completamente negros, com o cassetete erguido, pronto para me atacar. Ah, Deus, ele está sorrindo, ele realmente gosta disto. Fecho os olhos, penso em uma dor tão grande quanto o oceano, penso em um mar vermelho-sangue. Penso em minha mãe.

Então sou jogada para o lado e surge um braço em minha cintura, e uma voz em meu ouvido, uma voz tão familiar que naquele momento é como se eu estivesse esperando por ela o tempo todo, como se estivesse ouvindo-a desde sempre em meus sonhos, sussurrando:

— Por aqui.

David mantém um braço em volta da minha cintura, quase me carregando. Estamos em um corredor diferente agora, menor e totalmente vazio.

Devemos estar em uma parte da casa que não estava sendo usada para a festa. O quarto está completamente escuro, mas David não desacelera, ele simplesmente continua avançando pela escuridão. Deixo que a pressão das pontas de seus dedos me guie, esquerda, direita, esquerda, direita.

— Para cima — Sussurra David, tão baixo e tão perto que é como se eu tivesse apenas imaginado, e, assim, ele me levanta e percebo que estou saindo por uma janela; sinto a madeira áspera do parapeito arranhar minhas costas e um prego rasgar minha perna direita. Aterrisso com a perna boa na grama macia e úmida do lado de fora.

Um segundo depois, David faz o mesmo silenciosamente, materializando-se a meu lado no escuro. Apesar de o ar estar quente, uma brisa começa a soprar, e ao senti-la em minha pele tenho vontade de chorar de gratidão e alívio. Mas não estamos seguros ainda, longe disso. A escuridão é mutável, incerta e cheia de fragmentos de luz: lanternas cortam o bosque à direita e à esquerda, e, naquele brilho, vejo figuras fugindo, iluminadas como fantasmas, paralisadas por um instante na claridade.

Os gritos continuam, alguns a poucos metros de distância, outros tão distantes e desamparados que seria possível confundi-los com outra coisa, com corujas, talvez, piando pacificamente em suas árvores.

Então David pega minha mão e estamos correndo de novo. Cada passo com meu pé direito é como uma chama, uma lâmina. Mordo o interior das bochechas para não gritar e sinto o gosto de sangue. Caos. Cenas saídas do inferno, luzes vindas da estrada, sombras caindo, ossos quebrando, vozes se estilhaçando e desaparecendo no silêncio.

— Aqui dentro.

Faço o que ele diz sem hesitar. Um pequeno abrigo de madeira apareceu milagrosamente na escuridão. Está caindo aos pedaços e tão coberto por musgo e plantas que, mesmo a distância de poucos metros, aparentava ser um emaranhado de arbustos e árvores. Preciso me inclinar para entrar, e ao fazê-lo, o cheiro de urina de animal e de cachorro molhado é tão forte que quase engasgo. David entra depois de mim e fecha a porta. Ouço um ruído e vejo-o se ajoelhando, colocando um cobertor no espaço entre a porta e o chão. O cobertor deve ser a fonte do cheiro. É absolutamente fedido.

— Meu Deus — Sussurro, é a primeira vez que falo com ele, cobrindo a boca e o nariz com as mãos.

— Assim os Caídos não sentirão seu cheiro — Sussurra ele, confiante. Nunca conheci alguém tão calmo em minha vida.

Então me sinto envergonhada. Ele acabou de salvar minha vida.

Ele salvou a minha vida.

Nada mais faz sentido. Minha cabeça está girando, e eu me sinto tonta. Tropeço, esbarrando na parede atrás de mim, e David me alcança para me segurar.

— Não podemos ficar aqui, temos que voltar e ajudar os outros.

— Todos os Nephilins já estão mortos, Ally. Sente-se — Diz ele com a mesma voz autoritária que tem usado o tempo todo. É reconfortante ouvir suas ordens baixas e decididas, e relaxar. Abaixo-me até o chão. O piso é úmido e duro. A lua deve ter surgido entre as nuvens; buracos nas paredes e no telhado permitem a entrada de pequenos pontos de luz prateada.

Flor da meia-noiteWhere stories live. Discover now