44. Antes do pôr do sol

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Outro dia, fiquei pensando no mundo sem mim. Há o mundo continuando a fazer o que faz. E eu não estou lá. Muito estranho. Penso no caminhão do lixo passando e levando o lixo e eu não estou lá. Ou o jornal jogado no jardim e eu não estou lá para pegá-lo. Impossível.

E, pior, algum tempo depois de estar morta, vou ser verdadeiramente descoberta. E todos aqueles que tinham medo de mim ou que me odiavam enquanto eu estava viva vão, subitamente, me aceitar. Minhas palavras vão estar em todos os lugares. Me farão muito mais corajosa do que sou. Muito mais. A raça humana exagera tudo: seus heróis, seus inimigos, sua importância.

Uma hora depois, eu havia preparado e comido um lanchinho de fim de noite – biscoitos cream-cracker com cream cheese e cappuccino –, tinha arrumado a cozinha e assistido a um pouco de televisão. Pensei em ouvir um pouco de Chopin, para romper o silêncio, mas não queria que a música me impedisse de ouvir outros ruídos. A última coisa de que eu precisava era de alguém se esgueirando pelas minhas costas.

Controle-se! Foi a ordem que dei a mim mesma. Ninguém vai se esgueirar pelas suas costas.

Depois de algum tempo subi as escadas para o meu quarto e liguei a tv de lá. O cômodo estava limpo sob todos os aspectos, por isso arrumei as roupas no armário de acordo com a cor, tentando me manter ocupada para não cair na tentação de adormecer. Nada me faria mais vulnerável do que dormir, e eu queria adiar isso ao máximo possível.

Limpei o alto da minha cômoda, organizei os livros em ordem alfabética. Garanti a mim mesma que nada de ruim iria acontecer. Provavelmente eu acordaria na manhã seguinte percebendo como estava sendo ridiculamente paranoica por não ter Jordan aqui para me proteger.

— Acho que todos concordam comigo que Allyson Hale, a estrela do Lincoln High faz um pouco de falta nos jogos — A voz de Gibson, o locutor dos jogos da faculdade do canal de esporte citando meu nome me tira de meus devaneios na hora.

— Com certeza, Gibs — Kate sorri — Sentimos falta dela, mas não podemos impedi-la de tirar um ano sabático. Ou dois.

— Vamos, Ally, entra no círculo, sentimos sua falta!

— Falo por todos quando peço gentilmente, ou não, que Allyson faça testes para a universidade ano que vem — Gibson ri e se volta para a câmera depois de parabenizar minha antiga colega de time.

— Muito obrigada Kate, foi um ótimo jogo, rumo às nacionais. Aqui quem fala é Gibson Clarke, direto das quadras da Universidade Estadual da Pensilvânia.

Meu coração apertou um pouco ao me lembrar do quanto deixei para trás ao embarcar nessa viagem sem volta. Balanço a cabeça para expulsar aquele pensamento e volto a organizar o quarto.

Me sento um pouco ao sentir uma dor causticante nas costas, uma dor aguda, como um lembrete constante do que vivi com Adam. As feridas do intensificador eram vívidas como uma placa de trânsito brilhante. E sei que no fim das contas, mesmo não admitindo, não queria me livrar delas, era como um lembrete de que eu precisava seguir até chegar no fim do túnel, a minha vingança.

Afasto o moletom do ombro e olho mais uma vez apenas uma das muitas das marcas. Preciso encerrar o assunto.

Ao abrir uma gaveta da cômoda encontro algo enrolado em um pano. Arfo quando me lembro da adaga que, por um acaso, matou Jake. Desenrolo e observo os desenhos entalhados nela, parecem contar uma história, como sempre fizeram, mas é tudo diferente agora, tenho mais livros, mais tudo.

Parece que arranjei o que fazer.

Tiro a tábua solta do meu guarda-roupa e pego os livros que achei em Riverland, jogo tudo em cima da mesinha, ponho os óculos e começo a estudar os símbolos.

Flor da meia-noiteWhere stories live. Discover now