46. Terra Prometida

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Eu não me lembrava de nada, não me lembrava de quem eu era, de onde eu tinha vindo, para onde eu estava indo. A única coisa que eu sabia, que eu sentia naquele momento era que o fogo me consumia. Fogo nas minhas pernas e nos pulmões, fogo dilacerando cada nervo e cada célula do meu corpo.

Pensei: "Então é assim que eu nasço de novo", não sabia o porquê, mas foi assim, em agonia: emergindo da escuridão e do calor sufocante. Forcei passagem por um espaço escuro e úmido de ruídos e odores estranhos.

Levantei os olhos e percebi que estava em uma floresta densa.

Corro e, quando não consigo mais correr, sigo mancando, e quando não consigo nem mais mancar, rastejo, centímetro por centímetro, cravando as unhas no solo como uma minhoca que desliza pela vegetação alta de uma selva nova e estranha.

Senti um líquido espesso debaixo dos meus braços e parei para observar o que estava vestindo. Uma calça escura, estava rasgada em diversos lugares, uma blusa de tecido leve que suspeito que antes era branca, mas agora está manchada em um tom de vermelho escuro. Sangue. Estou sangrando. O fogo vem de um ferimento nas costelas. O lugar onde fui atingida estava preto. Eu conseguia enxergar minhas veias subindo pela barriga em direção ao coração.

Ver tanto sangue, a pele arrancada, torna tudo real: este lugar novo, a vegetação densa, monstruosa por todos os lados, o que aconteceu, o que deixei para trás? O que não consigo me lembrar?

Estou com fome, desconfio que não tenho nada no estômago, e mesmo assim vomito. Tusso e cuspo alguma lama preta nas folhas que me rodeiam. Não me lembro de quem eu sou, mas me lembro de instintos de sobrevivência. Onde aprendi? Com quem aprendi?

Pense garota, pense.

Tiro a blusa, que já está destruída em alguns pontos, rasgo uma tira da barra e amarro a parte mais limpa abaixo do peito, com força, a dor que se segue quando o tecido toca o ferimento é aguda. Grito ao vazio, mas amarro com toda a força que consigo. Não sei por que, mas sinto que isso vai parar o sangramento.

Não faço ideia de onde estou, tampouco sei para onde estou indo. Meu único pensamento é seguir em frente, continuar rastejando, adentrando cada vez mais a mata, seguindo para longe das... das o que? Não consigo me lembrar. Não consigo me lembrar!

Passo a passo, luto contra espinhos, abelhas e mosquitos, afasto os galhos grossos e cheios de ramos, atravesso nuvens de pernilongos e a bruma que paira no ar. Em determinado momento chego a um rio: estou tão fraca que quase sou arrastada pela correnteza. À noite, cai uma chuva forte e gelada; fico encolhida junto às raízes de um carvalho enorme enquanto, à minha volta, animais que não enxergo gritam, chocalham e estalam na escuridão. Estou apavorada demais para dormir; se eu dormir, vou morrer.

Quando não consigo mais seguir em frente, nem sequer um centímetro, deito a cabeça no chão e espero a morte. Estou cansada demais para sentir medo. Acima de mim há escuridão, e tudo ao meu redor é escuridão, os sons da floresta são uma sinfonia que canta minha despedida deste mundo. Já estou em meu enterro. Estou sendo baixada para um espaço estreito e escuro, vejo pessoas ao meu redor, uma mulher de cabelo castanho e outras garotas e garotos, jovens, eles choram, mas não sei quem são. Não os conheço.

Ei. Ei.

Acorde.

— Ei. Acorde. Vamos, vamos.

A voz me arranca do túnel, e por um momento fico muito decepcionada quando abro os olhos e encontro outro rosto distinto e nada familiar. Não consigo pensar; o mundo está todo em pedaços. Cabelo preto, um nariz pontudo, olhos verdes intensos: peças de um quebra-cabeça que não consigo montar.

Flor da meia-noiteWhere stories live. Discover now