36. Lar, terrivel lar

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Era incrível o modo como conseguíamos qualquer coisa apenas nos concentrando e escolhendo as palavras certas. Eu e Miriel pegamos duas passagens e umas roupas para desembarcar já que seria muito estranho chegar, e até mesmo entrar no avião, com roupas tão sujas. Não estou reclamando, afinal, tudo o que o clã de Kaleesa tinha feito por mim vai além de qualquer coisa que eu pudesse pedir. Mas eu ainda tinha uma imagem a zelar.

Chegamos à minha casa de noite, então não tive tempo de falar com ninguém, e nem sei se queria, na verdade. Nem mesmo a Hazel, ou a Jess, ou... David. Eu não sabia o que tinha acontecido com ele, um dos seus sonhos era ganhar uma bolsa em Berkeley, será que ele tinha conseguido?

Voltar à Ellicot era estranho, estranho demais, rever as ruas asfaltadas, os carros indo de um lado para o outro, sempre apressados, as pessoas eufóricas, trabalhando e estudando sem ter a menor noção do que acontece à volta delas. Era desesperador. Principalmente quando eu tinha me acostumado a ter apenas a floresta ao meu redor por um ano.

Estava terminando de arrumar o quarto quando meu pai entrou, se apoiando nas paredes. Ele estava magro demais, e com sombras escuras ao redor dos olhos, o peso da doença estava esmagando-o aos poucos.

— Oi — Digo com peso na consciência e ele sorri, sabendo muito bem o que se passa na minha cabeça.

— Oi, querida — Meu pai olha para algo além de mim e eu me viro pra saber o que é. Encontro um troféu na parte do meio da enorme estante que ocupa boa parte da minha parede, os outros estão ao lado dele, mas aquele era o mais especial, e ele sabia disso — Sua primeira final estadual.

— É — Rio pelo nariz e cruzo os braços — Eu estava com medo de entrar, mas você me convenceu.

— Ah, você não tinha nada a temer porque era muito melhor do que todas as outras.

— Fala isso porque é meu pai — Me sento ao seu lado e toco meu ombro no seu, com o maior cuidado do mundo para não o machucar, mais do que eu já tinha machucado, mas fisicamente dessa vez — É sua obrigação me bajular.

— Aquele troféu diz isso pra mim, assim como os outros três — Ele diz rindo e eu pouso minha cabeça na curva de seu pescoço.

— Como você está?

— Cansado — Meu pai respira fundo — Bem cansado.

— Eu sinto muito, pai, sinto muito por ter ido embora sem avisar, por não ter voltado quando a mamãe contou que você estava doente, eu sinto tanto.

— Um ano, Ally — Ele passa a mão pelo meu cabelo e me sinto com sete anos de novo, prestes a chorar — É tempo suficiente para termos perdoado você. E acho que sabíamos das consequências quando te adotamos.

— Eu sou um pé no saco e um peso enorme né.

— Sim — Ele sorri e finjo estar ofendida — Mas eu te amo mesmo assim — Fecho os olhos apreciando aquele momento de paz — Vá dormir, você deve estar exausta, amanhã conversamos sobre aquele menino loiro no meu quarto de hóspedes, e as histórias de Riverland e... tudo mais.

Não me lembro de quando peguei no sono, mas o cheiro salgado me desperta na manhã seguinte. Alguém abriu a janela da minha sacada e deixou a brisa fresca do outono e a luz brilhante do sol entrar, junto com o mar. Nossa, como senti falta desse mar. A tempestade da noite anterior passou, deixando apenas o orvalho nas folhas da árvore perto da minha janela.

Antes de abrir os olhos, tento fingir que a única escolha é ir ou não ir à escola, qual roupa usar, e que daqui a pouco vou ouvir minha mãe me gritando, então pegaria Adam no ponto de ônibus, ele reclamaria mas entraria no carro e nos separaríamos antes de entrar na escola. Eu encontro Jess e Hazel, zoamos alguém e vamos para a aula de Matemática, lá encontro Jake e ficamos juntos o resto do dia.

Flor da meia-noiteWhere stories live. Discover now