Capítulo 38

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– Então, Gael – Minha tia pigarreia. Eu não gosto da palavra "pigarrear". Ele é feia e meu dicionário diz que significa limpar a garganta. É nojento. – Você quer falar sobre o vovô com a gente?

Neguei, apertando minha pelúcia mais forte contra mim.

– Você pode começar a dizer como se sente – Insistiu o marido da minha tia. Eles falaram que ele era meu tio, mas ele não tem meu sangue, e eu não gosto muito de pessoas que não sejam do meu sangue.

Isso é verdade, porque eu li que o DNA tem a capacidade de duplicação semiconservativa, onde a fita antiga serve de molde para a nova fita que se ligará através de pontes de hidrogênio entre as bases nitrogenadas, e...

– O garoto não sente nada, ele é apático a tudo – Mamãe interrompeu meus pensamentos... devaneios, me olhando de cima a baixo.

Me encolho. Não gosto quando ela faz isso, porque sei que ela está brava comigo. Da última vez que tive uma CB, ela me bateu até que me calasse. E doeu, então acho que não vou mais fazer isso.

– Ele não consegue mostrar o que sente – Minha tia suspirou. – Gael só não entende sobre isso

– Assimilar... Compreender... Captar... Apreender – Sussurrei baixinho e mamãe bufou irritada. Ela sempre está irritada comigo. Ela diz que eu sou INSUPORTÁVEL.

– Ele está prestando atenção – O marido da minha tia concluiu, olhando para mim. Aliás, todos estão olhando para mim.

Me escondo debaixo da mesa, fugindo das olhadelas. Eles invadiram MEU ESPAÇO PESSOAL. Eu não gosto que olhem para mim. Eu não quero que olhem para mim.

– GAEL! – Mamãe rosna, me puxando pelo braço e me colocando sentado ao seu lado.

Retiro meu braço dos seus dedos e massageio o lugar. Mamãe invadiu MEU ESPAÇO PESSOAL. Mas eu não me importei quando ela invadiu MEU ESPAÇO PESSOAL quando ela fez carinho em mim quando me viu chorando depois que vi o vovô morrendo. Eu gostei do carinho dela, mas só dela, mesmo que tenha sido uma vez.

– Você amava o vovô? – Minha tia se inclina para meu lado. Eu não entendo porquê as pessoas precisam chegar tão perto. Não é como se ela não estivesse me ouvindo.

– Privacidade – Avisei, mordiscando a manga do meu suéter.

– Que raios! – Mamãe grunhi, antes de começar a gritar. – Pare de ser egoísta! Pare de ser estranho e apático! E RESPONDA ESSA MERDA!

Rosno baixinho, erguendo a gola até que eu estivesse dentro do suéter. É quentinho e apertado, eu acho que já rasguei três suéteres desse jeito.

Mamãe sempre grita comigo, e eu sempre rosno baixinho depois. Meu avô me disse que isso significa que estou magoado, e que é comum entre alfas. Mas ele não me disse só isso: ele sempre conversava... articulava... dialogava comigo. Ele tinha uma voz suave, porque sabia que eu não gostava de barulho. Era prazeroso. Parecia as musiquinhas de fundo dos desenhos animados.

– Nós vamos levá-lo ao psicólogo – Minha tia informou, e eu sabia que ela estava olhando para mim.

Pare de olhar, por favor...

Por favor... Vovô dizia que eu tinha que ser educado, e ele sempre me dava pirulitos depois que eu dizia algo RESPEITOSO. E sempre limpava os doces na água, porque ele sabia que eu não gostava de coisas que não passavam na água antes, porque elas estariam sujas, e eu não gosto de coisas sujas.

– Você acha que vai ajudar? – Mamãe perguntou... inquiriu. Eu gosto mais dessa última palavra. Mais elegante. – Pois eu acho que não vai adiantar porra nenhuma. Ele é um deficiente. Minha nossa... eu deveria tê-lo tirado enquanto ainda era um feto.

– Não diga isso perto de Gael.

– Ele não entende nada, pois não é como nós. Ele é um fodido! Ah, se você soubesse como as crianças tem medo e nojo dele – Mamãe suspirou. Eu adoro o som, então repito e ela me olha brava. – E elas têm razão de terem asco.

– Eu não entendo como você pode ser a mãe dele – O marido da minha tia aumenta o tom de voz. Eu sei que isso significa que o cérebro envia mensagens para os nervos até que os músculos que controlam as pregas vocais se aproximem. O som fica mais alto.

– Fácil falar – Mamãe rosna. – Você não tem que lidar com as crises dele, vê-lo gritando e se cortando propositalmente e te ignorando quando você fala – Suspirou de novo. E eu a imitei de novo, mas ela não estava mais prestando atenção em mim. – Gael odeia que eu olhe em seus olhos, ou que o toque.

Odiar? Vovô disse que é uma palavra forte, então devo usar "detestar".

– Você nunca esteve pronta para ter uma criança especial. Seu pai cuidava-o enquanto estava vivo, mas agora que ele se foi. E definitivamente não podemos deixar Gael com você.

– Ah, eu sou a vilã! – Bateu as mãos na mesa, me fazendo sobressaltar e me esconder de novo debaixo dos bancos. Fico encarando os saltos da minha tia e penso no dia que eu li que uma mulher de 45kg pode exercer uma pressão de um elefante sob o solo quando anda de saltos. Ela poderia me esmagar com aquilo. Tenho certeza que o Pietro da escola gostaria de fazer isso comigo.

– Não estamos te julgando irmã. Eu sei que Gael é difícil, e é por isso que vamos pagar terapia. Prometemos que faremos o melhor para ele – Minha tia falou, colocando a cabeça para baixo da mesa e me encontrando.

Parece esconde-esconde. Eu detesto esconde-esconde. As crianças dizem que eu não sei brincar.

– Gael, você vai passar um tempo conosco na nossa casa – Diz, sorrindo para mim. Por que ela está sorrindo? Seus olhos não parecem felizes. Não faz sentido sorrir quando você não quer sorrir. – É grande e tem muitos brinquedos e...

– Livros? – Pergunto, engatinhando até que não pudesse mais bater a cabeça na madeira.

– Claro, temos vários. E temos muitas coisas para crianças especiais como você.

Especial? Eu sou especial? No dicionário diz que é algo peculiar... particular... específico. Vovô dizia que era algo bom, porque significava que eu sou singular. Que eu não sou igual aos outros.

Mas a mamãe diz que eu devo me ADEQUAR as crianças, não ser INDIVIDUALISTA. Eu tento, sempre tento. Mamãe não vê isso porque ela não estuda junto comigo, mas eu me ADEQUEI a Emily quando ela esqueceu sua boneca em casa e estava sem nenhum brinquedo, e eu dei uma das minhas pelúcias para ela, mas ela recusou, falando que iria pegar A DOENÇA. Eu não sou doente, só quando eu pego gripe, mas daí eu fico longe dos outros para que assim ninguém fique com o nariz escorrendo, porque é nojento. E nem com dor de garganta, porquê é ruim ficar com dor.

Fica complicado... dificultoso... labiríntico quando as crianças não querem se ADEQUAR a mim. Por que sempre tem que ser eu o primeiro a se ADEQUAR? Isso é injusto, mas o vovô disse que as coisas são injustas. Talvez seja por isso que ele morreu, porque a vida foi injusta com ele como tem sido comigo. 

StrangerWhere stories live. Discover now